Reza Aslan: "Estamos vendo a reforma do islã ao vivo" – Por Rodrigo Turrer


 Para o historiador das religiões, a violência no mundo muçulmano, que se espalha por todo o planeta, é resultado do conflito entre as muitas vertentes do islamismo.

O historiador iraniano-americano Reza Aslan se tornou um best-seller com Zelota (308 páginas, Editora Zahar), livro polêmico em que retrata Jesus Cristo como um revolucionário. Ele gosta de uma briga. 

Toda vez que aparece na televisão americana para falar sobre o assunto no qual se especializou, as religiões, há repercussão. Depois dos atentados terroristas em Paris, em 7 de janeiro, Aslan voltou a provocar controvérsia ao dizer que o islamismo não é responsável pelo crime. 

“Religiões não promovem violência ou paz. As pessoas são violentas ou pacíficas, e elas trazem esses valores para as religiões”, afirma, em entrevista a ÉPOCA. 

“Esse é o poder da religião: ela é infinitamente maleável.”

ÉPOCA – O senhor diz que religiões não promovem a violência. É difícil acreditar nisso num mundo assolado por atentados promovidos por radicais religiosos, não acha?

Reza Aslan – Digo que as religiões não promovem violência ou paz. As pessoas são violentas ou pacíficas, e elas trazem esses valores para as religiões. Duas pessoas podem olhar para o mesmo trecho da Bíblia e sair com ideias completamente diferentes, fazer leituras pacíficas ou violentas. A religião depende diretamente da pessoa que a interpreta. As pessoas enxertam seus valores e suas ideias nas religiões, muito mais do que absorvem valores e ideias das religiões. Nos Estados Unidos, apenas dois séculos atrás, proprietários de escravos e abolicionistas não apenas usavam a mesma Bíblia para justificar seus pontos de vista conflitantes, como usavam os mesmos versículos. Este é o poder da religião: ela é infinitamente maleável. Não lemos as escrituras há 5 mil anos porque elas são verdadeiras. Nós as lemos porque elas são capazes de refletir a necessidade de constante evolução de uma comunidade, de um indivíduo ou de uma ideologia política. Há cristãos nas colinas da Guatemala que veem Jesus como um guerreiro libertador que pega em armas contra o opressor. Mas há também os cristãos do Meio-Oeste dos Estados Unidos, que acreditam que Jesus quer que você dirija um Bentley. Os dois estão certos. É por isso que a religião importa.

ÉPOCA – Essa ideia não parece tão clara quando se trata do islamismo. Temos a impressão de que há muito mais islamistas cometendo atrocidades em nome da religião do que cristãos, judeus, budistas, hindus. Por quê?

Aslan – É verdade que a maior parte da violência que vemos vem de uma região do mundo, e a maior parte desses ataques é cometida por seguidores do islã, ou melhor, de uma vertente do islã, o wahabismo, a versão puritana e extremista do islã da Arábia Saudita. Esse é o islã do Estado Islâmico, do Boko Haram, da al-Qaeda, do Taleban. Todos esses grupos terroristas bebem na mesma fonte. Mas é incorreto dizer que há mais violência cometida em nome do islã do que em nome de outras religiões. Na Europa, ao longo dos últimos seis anos, apenas 6% dos ataques terroristas foram cometidos por muçulmanos. Mais de 40% foram cometidos por grupos neonazistas. Na Nigéria, grupos cristãos massacram fiéis de outras religiões. Em Mianmar, há monges budistas radicais que assassinam mulheres e crianças. Quando olhamos apenas para uma região, temos uma visão parcial. Mas é incorreto pensar que tal região, ou religião, padece mais de extremismo religioso do que outra.

ÉPOCA – A Arábia Saudita é responsável pela ascensão do radicalismo e do terrorismo islâmico? 

Aslan – Sem dúvida. O wahabismo, essa vertente ultraortodoxa, puritana e pseudorreformista do islamismo sunita, começou na Arábia Saudita, na metade do século XVIII, fundada pelo clérigo Mohamed Ibn Abdul Wahab. É uma religião que prega a volta ao culto monoteísta puro do islã e que chama todos os outros religiosos, islâmicos ou não, de apóstatas. Os sauditas gastaram US$ 100 bilhões nos últimos anos para espalhar essa vertente do islamismo pelo resto do mundo, construindo escolas e mesquitas wahabistas. Não há um canto do mundo em que haja muçulmanos que não tenham sido inundados por dinheiro saudita e por propaganda religiosa saudita. Eles criaram um vírus que se espalhou por todo o mundo muçulmano. Quando você tem um vírus, você precisa erradicar a fonte. Bem, o mundo sabe qual a fonte desse vírus. São os melhores amigos dos Estados Unidos. É absurdo que um país que patrocinou a ascensão de uma ideologia responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas não seja responsabilizado por ela. Ao contrário, continua sendo prestigiado. Quando o rei Abdullah, monarca da Arábia Saudita, morreu na semana passada, o presidente Barack Obama, o secretário de Estado John Kerry e uma dúzia de integrantes do alto escalão do governo americano foram à Arábia Saudita para homenageá-lo. Sem levar em consideração que Abdullah comanda um país que decapita 80 pessoas por ano, condena a 1.000 chibatadas quem manifesta suas opiniões, impede as mulheres de dirigir e de votar e patrocina o terrorismo global.  Isso não é estranho? Se a Arábia Saudita não fosse o maior produtor de petróleo do mundo, seria tratada como a Coreia do Norte, com asco, rejeição e sanções internacionais.

"Se a Arábia Saudita não produzisse petróleo, seria tratada como a Coreia do Norte"

ÉPOCA – Em que o wahabismo e seus seguidores se diferem da ideologia do Hamas e da Irmandade Muçulmana?

Aslan – A Irmandade Muçulmana e os grupos a que ela deu origem, como o Hamas, são islamistas. O islamismo é uma ideologia nacionalista e uma filosofia política que serve de base para um nacionalismo religioso e pretende criar Estados regidos por uma lei islâmica. É claro que esse tipo de islamismo tem várias formas. O Hezbollah é uma organização islamista, mas o Ennahda, na Tunísia, também é. O primeiro é uma organização terrorista, o outro é um partido democraticamente eleito. O islamismo político tem várias formas e tamanhos, mas todos, sem exceção, querem construir um Estado, com fronteiras e soberano. O Hezbollah não existe fora do Líbano. O Hamas não tem uma ideologia fora da Palestina. A Irmandade Muçulmana não tem uma ideologia fora do Egito. Já Isis (antiga sigla para o Estado Islâmico do Iraque e do Levante), al-Qaeda, Boko Haram e outros do gênero são movimentos jihadistas. É o exato oposto de um islamista. Um islamista quer construir um Estado. Um jihadista quer se livrar de todos os Estados, islâmicos ou não. Os jihadistas são globalistas e querem reconstituir um mundo inteiro sem fronteiras, sem nacionalidades, sem Estados. Eles querem voltar ao século VII e criar um mundo islâmico. É isso que eles chamam de califado.

ÉPOCA – Mas ambos acreditam que usar a violência é o caminho para atingir seus objetivos, não?

Aslan – Depende. O Ennahda não é violento, nunca foi. Chegou ao poder de forma democrática na Tunísia. A Irmandade Muçulmana, nas décadas recentes, também não foi violenta, ao contrário. Tem sido perseguida pelo governo militar no Egito. Tudo depende de e para onde você olha. É claro que o Hamas e o Hezbollah são organizações terroristas que cometem crimes. Mas lutam por coisas completamente diferentes. O termo Estado Islâmico, inclusive, não faz sentido, porque o Isis não quer um Estado, eles querem o mundo todo. Hamas, Hezbollah, Isis e al-Qaeda não são a mesma coisa. Ao contrário. O Hamas luta contra o Isis. A al-Qaeda é inimiga da Irmandade Muçulmana. Não é uma diferença pequena. É preciso entender essas diferenças para ganhar a guerra contra o terrorismo.

ÉPOCA – O historiador Paul Johnson afirma que o judaísmo e o cristianismo passaram por reformas, enquanto o islã não. Na verdade, o islã parecia muito mais secular e avançado há 100 anos do que hoje. O islã precisa de uma reforma?

Aslan – Primeiro, é ridícula a ideia de que o cristianismo e o judaísmo passaram por reformas e agora seus praticantes são pacíficos, alegres e confraternizam plenamente. Há inúmeras discordâncias dentro dessas religiões, há violência e assassinatos, apenas não estamos prestando atenção nisso. Em segundo lugar, as pessoas não entendem o que uma reforma religiosa significa. A reforma cristã levou à Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e à morte de metade da Alemanha. Atenção: metade da população da Alemanha morreu durante a reforma do cristianismo. As pessoas enxergam as reformas como eventos em que todos se juntam, dão as mãos, se abraçam e cantam. Reformas são eventos sangrentos, violentos, catastróficos. O que você acha que está acontecendo neste momento no mundo muçulmano? Isso é a reforma do islã. Estamos vendo a reforma do islã acontecer ao vivo. É por isso que há tanta violência. Uma reforma significa um embate entre instituições e indivíduos sobre quem tem a autoridade para definir os dogmas de uma fé. Esse é um processo violento. As pessoas olham para o mundo muçulmano, veem a violência e dizem: o islã precisa de uma reforma. A violência que vemos hoje é o resultado da reforma do islã. Os muçulmanos estão vivendo sua reforma neste instante. São muitas vertentes, sunitas e xiitas, se digladiando por espaço. Se você vivesse na Alemanha do século XVI, provavelmente acharia que o mundo acabaria. É isso que está acontecendo no islã. 





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