Aleluia! “Ouvir os outros é o mais próximo que tenho de um sentimento religioso” - Por Joana Azevedo Viana



Bruno Vieira Amaral não pretendia explorar a complexidade das religiões num livro, mas aproximou-se disso na última obra. Um hino à humanidade, enquadrado na fé, que é para todos, religiosos e ateus.

Dois humanistas ateus sentaram-se para conversar sobre religião. Um é de uma família católica, com missa e catequese à mistura. O outro, o escritor, cresceu “rodeado de religião por todos os lados”: a família do pai é evangélica baptista e a avó materna, com quem viveu, era testemunha de Jeová. Com ela frequentou reuniões “na infância e na adolescência”, uma experiência que foi, “claro, marcante”

Em comum têm percursos que os levaram a abandonar a religião e a fé. Mas foi de religião e de fé que falaram, numa vénia às escolhas individuais e (até) ao secularismo, mas acima de tudo a “Aleluia!”, o novo livro de Bruno Vieira Amaral, acabado de editar.

A sua experiência religiosa, ou a de B., é no livro o fio condutor de caminhos de fé que não o seu. Conta-nos que foi talvez graças ao seu primeiro romance, o premiado: “As Primeiras Coisas” (2013), que o director de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos, António Araújo, o convidou a engrossar a colecção Retratos. Mas não com este. 

“A sugestão era fazer um retrato sobre o que é viver nos subúrbios. Mas como o meu romance está dentro desse universo e como há já algum tempo que tinha a ideia de escrever sobre minorias religiosas, sobre igrejas evangélicas, ofereci a contraproposta de me centrar em igrejas cristãs não católicas, que acabam por ser um fenómeno dos subúrbios.”

A ideia anterior ao convite era escrever uma reportagem: passar os domingos a ver como as pessoas vivem a sua fé nos seus cultos, nas várias denominações da corrente protestantista, hoje ainda marginal num Portugal profundamente enraizado no catolicismo. 

Agora que o fruto da investigação está lançado, reconhece que “teria sido um erro [fazer a reportagem] porque ficaria pela superfície, pelo aparato, e dificilmente pela observação exterior se percebe exactamente o funcionamento de uma igreja; seria um mero exercício que poderia acabar em algo que queria evitar, que era uma espécie de caricatura dessas experiências religiosas”.

“Aleluia!” é tudo menos isso. Segue as histórias singulares de fé de um punhado de personagens, entre elas João Viegas, que se desencantou com a igreja que integrava e decidiu fundar a sua própria. Isto tem-lhe valido algumas críticas. 

Tiago Cavaco, talvez o mais famoso cristão baptista de Portugal, também ele personagem nesta obra de não-ficção, foi o primeiro a escrever um longo comentário a “Aleluia!” e, apesar do tom geral positivo, a dada altura diz que “o Bruno parece gostar de figuras religiosas desde que elas demonstrem um tipo de religião, aquela que fica fora da organização”.

O escritor compreende “o que ele queria dizer”, mas na verdade foi uma escolha deliberada que nada teve a ver “com esse lado romântico de que o Tiago fala”, antes com a oposição entre percursos individuais e a institucionalização das religiões organizadas. 

“A instituição preocupa-se em sobreviver, em manter a sua identidade, a sua estrutura e as suas crenças e as experiências individuais de busca no interior de instituições muitas vezes são anuladas”, explica. 

“Para dar um exemplo que todos perceberão, quando certas dioceses católicas esconderam os casos de pedofilia, não acredito que o tenham feito por pactuarem com a pedofilia ou porque são todos pedófilos. É uma questão de sobrevivência da própria instituição. O que me interessa é esta tensão entre a procura individual de fé e aquilo que é a norma das instituições em que ela se insere.”

Dicotomias

A característica não é exclusiva das religiões, “acontece por exemplo nos partidos políticos, quando as pessoas aderem a um partido fazem-no abdicando de um certo grau de liberdade”. 

O que o atrai não é a ideia de alguém contra o mundo ou contra a igreja, são “as suas experiências de fé, dentro ou fora das instituições.” É no fundo retratar a vivência da fé enquadrada na religião e os choques que se geram entre um indivíduo e a instituição que integra, instituições onde, “por vezes, a necessidade de sobrevivência prevalece sobre o que é certo e o que é errado”.

“Aleluia!” acaba por ser uma espécie de Bíblia com parábolas reais, um condensar de religião em literatura com laivos de reportagem e de estudo académico sobre as correntes evangélicas em Portugal. E porque não, se é precisamente a Bíblia que alimenta o mais longo debate literário de que há memória?

O retrato que Bruno pinta abre com a descrição do que aconteceu em 1995, quando um protesto frente ao Coliseu do Porto se dissolveu numa espiral de xenofobia perante as intenções da brasileira IURD abrir ali um local de culto. Uma versão menos violenta do que o que aconteceu há mais de 500 anos em Lisboa, quando a igreja católica e o rei incitaram o povo a matar milhares de judeus por preferirem a literatura do Antigo Testamento e desdenharem do Novo.

Já a encerrar a viagem pelas vivências do evangelismo, o escritor tira o chapéu à avó, o que nos traz ao lado utilitário da fé. “Quando as pessoas usam a sua fé para crescer, para chegarem ao outro, para perceberem melhor o outro, é essa a utilidade positiva da fé. Agora todos sabemos que, num mundo ideal, isto seria assim, mas que depois há questões que pesam mais, as pessoas valorizam mais a sua tribo, esse sentimento de pertença, querem diferenciar-se dos outros, não querem misturas, e em vez de a fé aproximar as pessoas, afasta-as.”

Serviço à humanidade O que “Aleluia!” acaba por nos lembrar é que, afinal, somos todos humanos, defeituosos. É um facto óbvio mas que muitos, religiosos e ateus, esquecem com facilidade. 

O autor lembra as palavras de Nuno Soares, uma das personagens, que a dada altura diz que “em vez de viver daquilo que fala, fala daquilo que vive”. Foi o que Vieira Amaral fez a partir das conversas com estes exemplos que servem de “espinha dorsal” ao livro, pessoas “mais preocupadas com a sua transformação pessoal do que em impor a sua fé e a sua visão do mundo aos outros”.

Se o autor tivesse enveredado pelo caminho das observações teórico-teológicas, provavelmente “Aleluia!” não teria este brilhantismo. Entre a nossa conversa e esta publicação, a vida real voltou a provar isso mesmo. Antes da entrevista as redes sociais foram inundadas por um vídeo de uma espécie de soldados de Cristo, os “Gladiadores do Altar” de uma IURD no Ceará que querem exterminar os gays. 

Já depois da entrevista, a Igreja Presbiteriana, com mais de dois milhões de seguidores nos Estados Unidos, anunciou que vai votar a hipótese de abrir os braços à comunidade LGBT e acolher fiéis não-heterossexuais no seu leito. É a tal dicotomia positivo-negativo.

Vieira Amaral não partilha “da opinião de que as religiões são o fundo de todos os males”. Se assim fosse, defende, as coisas já se tinham resolvido há muito tempo. Tem “uma opinião muito pessoal” das religiões, sobretudo das denominações neopentecostais que seguem a chamada teologia da prosperidade, mas não é disso que pretende falar. Acha simplesmente que “todos beneficiaríamos de um maior conhecimento destas minorias que passaram anos a viver no seu canto, sem fazer barulho, mas que existem, que têm fiéis”, em última instância para esbater divisionismos como os que existem dentro e fora de qualquer igreja. Mas acima de tudo, o que lhe interessa é perceber como é que as religiões surgem e se instalam, sem deixar que a sua educação ou crenças interfiram no estudo ou ditem o que pode ou não ser religião. 

“Como é que fenómenos como o mormonismo, tipicamente americano, de uma fase em que havia novos profetas em todas as terras, que tinha um pouco a ver com as condições económicas do local onde [os fiéis] viviam, acabam por chegar a pessoas em África? O que me interessa é perceber essas dinâmicas, de um ponto de vista sociológico mas também humano”.

Por isso não fecha a porta a mais livros onde a religião possa ser protagonista e por isso também encontrou na investigação para “Aleluia!” a experiência até hoje mais próxima de espiritualismo, ainda que secular. “Não me aproximou de deus, mas aproximou-me destas pessoas”, diz. 

“Eu acabava de falar com eles e sentia-me cheio. Ouvir os outros é uma coisa que me enche, será o mais próximo que tenho de um sentimento religioso. A diferença entre ouvir os outros sobre as suas experiências ou ouvir quem tem discursos de relações públicas dentro de instituições religiosas está neste livro. Foi esse o meu momento de exaltação. Foi o meu aleluia”.






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