Bósnia – A velha ponte, arco-íris no céu de Mostar - Por Clara Favilla



Debruço-me sobre o mosaico de repúblicas que resultaram do esfacelamento da antiga Iugoslávia. 

Os novos limites impostos por questões étnicas e religiosas foram desenhados por rios de sangue. Rios que transbordaram quando dos massacres de civis na Guerra da Bósnia de abril de 1992 a dezembro de 1995. A nova geopolítica dos Bálcãs tem muito de nonsense para quem é do Brasil. País tão grande, mas que fala do Oiapoque ao Chuí a mesma língua portuguesa, embelezada por uma infinidade de sotaques e tantos vocábulos africanos e indígenas.

Quando criança, eu também ouvia que o catolicismo nos definia. Hoje somos reconhecidamente católicos e evangélicos, espíritas, além de uma gama de religiões africanas. Abrigamos templos de todas as religiões do planeta, reflexo de nossa realidade demográfica cada vez mais diversa. 

Apesar da intolerância racial e religiosa, registrada recorrentemente no Brasil, nos é difícil entender a razão de uma República Sérvia, também conhecida por República Srpska, dentro da Bósnia, fazendo divisa com a Sérvia propriamente dita, cuja capital é Belgrado.

Como entender essas recorrentes novas e frágeis fronteiras, sabendo-se que 31% da população da Bósnia são sérvios de religião católica ortodoxa? Levando-se em conta que 17% são croatas católicos romanos, os bósnios muçulmanos nem são maioria, chegam a 44% do total. Achamos nosso sistema político um balaio de gatos. Imaginem vocês, na Bósnia, a presidência é tripartite: um bósnio, um croata e um sérvio que cumprem mandato revezando-se a cada oito meses.

Tenho uma amiga que mora na Itália e resolveu não mais retornar à cidade natal nos Bálcãs. Desde que ela nasceu, a propriedade de seus pais foi saqueadas por milícias de diferentes nacionalidades e religiões. Conheci, em Londres, no início da década de 90, uma senhora idosa armênia. Seu país não existe mais. 

Aqui em Brasília, conheci uma senhora da Prússia, que também desapareceu do mapa. Nasceu justamente na parte anexada irreversivelmente pela Polônia. Era de família de posses que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi obrigada entregar tudo o que produziam aos nazistas. Com o fim dos combates, os soldados americanos passaram por lá e saquearam todos os bens pessoais. De herança, apenas restou o anel de prata que havia pertencido à avó. Conseguiu fugir da Alemanha pós Hitler com ele escondido na boca.

Tudo isso eu contei para lhes falar, aqui, de Mostar, na Bósnia, que esteve no caminho do viajante do século 17, Mehmed Zilli ou Evliiya Çelebi, em turco. 

Por 40 anos, ele traçou caminhos, desde Constantinopla, por terras otomanas e vizinhas. Começou descrevendo edifícios, mercados e cenas cotidianas da cidade. Perto dos 30 anos, abandonou a rica família e botou pé no mundo. 

Percorreu os Bálcãs, esteve na Itália e França. E, mais ao norte da Europa, em Rotterdam, viu nativos das Américas convertidos ao cristianismo. Pois bem, esse viajante que professava a fé de Maomé com grande fervor e recitava o Alcorão de cor, escandalizou-se com a catequese católica e amaldiçoou os jesuítas.

Reconhecido pela tolerância religiosa, pela influência literária que continua exercendo sobre viajantes através dos séculos, pela compaixão e também indignação, demonstradas em seus registros, Zilli foi homenageado como o Homem do Ano, em 2011, pela Unesco.

As anotações do viajante otomano estão editadas em dez volumes com tradução completa apenas em alemão. São relatos sobre usos e costumes, paisagens e joias arquitetônicas das terras por onde andou. Alguns, verdadeiros poemas. 

Em Mostar, extasiou-se diante da ponte construída por Solimão, o Magnífico. Segundo os registros disponíveis, a construção demorou nove anos. Teria sido terminada em julho de 1567. O projeto é atribuído ao arquiteto otomano Mimar Hayruddin.

O sultão morreu aos 72 anos, em 1566, na Hungria, sem ver a ponte em seu esplendor. Durante os seus anos de glória, esteve à frente do poder militar, político e econômico, do Império Otomano em seu apogeu. Liderou a conquista das fortalezas cristãs de Belgrado, Rodes e de grande parte da Hungria até chegar aos limites de Viena em 1529. No século 16, a frota otomana dominava os mares do Mediterrâneo ao Mar Vermelho e o Golfo Pérsico.

Pois bem, quase um século depois, quando a grandeza de Solimão já era história, Zilli escreveu que a ponte de Mostar vista à distância, na paisagem, parecia tocar os céus. Ponte tão alta nunca havia antes maravilhado os olhos do viajante escritor. Quando a viu, majestosa sobre o rio Neretva, como arco-íris ligando um penhasco a outro, rendeu graças a Alá. A ponte assim permaneceu por 427 anos, até ser destruída, em 1993, por forças bósnia-croatas. Se na guerra vigora o desprezo pela vida, que respeito poderia haver por monumentos, mesmo se erguidos pela força do engenho e da fé?


Metaforicamente, a destruição da ponte explica o teatro de absurdo encenado sem quase tréguas na região. O absurdo que separa vizinhos, amigos, amores, famílias e ordena enterros em covas coletivas anônimas. 

A ponte, considerada Patrimônio da Humanidade, foi reconstruída e reaberta em julho de 2004. Deixo, para o próximo post, as lembranças prometidas do que não vivi em Ohrid, República da Macedônia. Lá, antecipo, reencontrei Mehmed Zilli.



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