Os nossos extremistas são boas pessoas, os deles são demoníacos – Por Francisco Louçã



É onde imperar a miséria e a desesperança que poderão fundamentar-se as leituras mais radicais de textos religiosos para enraizar o ódio aos outros.

Lembrava o filósofo Alain Badiou como tantos intelectuais se renderam aos preconceitos de um racismo de salão que foi naturalizando as extremas-direitas, em particular em França.

Como muitas vezes acontece, esses intelectuais que Badiou critica trocaram a reflexão, ou o esforço para perceber as contradições da realidade, pela ideologia, ou simplesmente pelo conforto da facilidade. Ora, o mais fácil é classificar e seriar, para assim se protegerem da sombra do desconhecido. Ou seja, aceitaram a xenofobia como lei da terra e como a linguagem para a rejeição do desconhecido.

Há uma base ancestral para esse medo da diferença e dois jovens holandeses quiseram testar um dos seus limites, interrogando pessoas na rua acerca de frases da Bíblia, lidas de um livro em que colocaram na capa a palavra “Corão”.

A maioria dos transeuntes inquiridos terá encontrado a confirmação para o que já achava evidente: são textos que provam a radicalidade, o extremismo, a violência e o sectarismo do Islão (no youtube existe um resumo dessa experiência). Tudo ficava explicado para as pessoas entrevistadas, que depois reagiam com estupefação ao saberem que se tratava da Bíblia.

Não sei de todos textos que terão sido citados, mas este estava incluído no rol: “Se não me escutarem e não cumprirem todos estes mandamentos (…) enviarei contra vós terror, a fraqueza e a febre, que vos vão tirar a vista e consumir a vida. (…) Terão que comer a carne dos vossos próprios filhos” (Levítico 26).

Existem muitos outros trechos que são do mesmo tipo, no Antigo como no Novo Testamento. Para citar alguns exemplos muito diferentes entre si:

“Não pensem que vim estabelecer paz à terra. Não vim trazer a paz, mas a guerra. Vim de facto criar divisão entre filho e pai, filha e mãe, nora e sogra: os inimigos de uma pessoa serão os da sua própria família. Aquele que amar o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim; o que amar o filho ou a filha mais do que a mim, não é digno de mim. Aquele que não pegar na sua cruz e não me seguir, não é digno de mim”. (Mateus 10:34)

“Se um homem tiver relações homossexuais com outro homem, ambos fazem uma coisa abominável e devem ser mortos, porque são merecedores disso”. (Levítico 20)

“Quanto uma mulher tiver o seu período menstrual, ficará impura durante sete dias. Todo aquele que lhe tocar ficará impuro, durante todo aquele dia.” (Levítico 15, todos os trechos citados da tradução da Bíblia editada em 2009, em Lisboa, pela Sociedade Bíblica).

Frei Bento Domingues, sob o título: “Será a Bíblia blasfema?”, tratou por estes dias, aqui no Público, um tema próximo desta experiência dos jovens holandeses. Ele cita um estudioso que se interroga com angústia sobre esta frase de Moisés, no Antigo Testamento:

“Quando te aproximares duma cidade para combater contra ela (…), Iavé teu Deus a entregará nas tuas mãos e passarás a fio de espada todos os seus varões, as mulheres, as crianças, o gado; tudo o que houver na cidade, todos os seus despojos, o hás-de tomar como espólio (…).Quanto às cidades destes povos que Iavé teu Deus te dá em herança não deixarás nada com vida; consagrá-los-á ao extermínio: hititas, amorreus, cananeus, ferisitas, hivitas e jebuseus, como te mandou Iavé, teu Deus, para que não vos ensinem a imitar todas essas abominações que eles faziam em honra dos seus deuses: pecaríeis contra Iavé vosso Deus” (Deuteronómio 20: 10–18).

A tradução de que disponho é ligeiramente diferente:

“Quando te aproximares duma cidade para lhe dares batalha deves primeiro propor-lhe negociações de paz. Se os seus habitantes aceitam a paz e te abrem as portas, todos os que lá se encontram serão teus escravos, para trabalhos forçados. Mas, se não quiserem a paz contigo e oferecerem resistência, então pões cerco à cidade. O Senhor, teu Deus, coloca-a à tua disposição e deves passar todos os homens a fio de espada. Mas podes ficar com as mulheres, as crianças e os animais, e recolher todos os despojos que nela tiverem ficado. (…) Mas não deves deixar nada com vida nas cidades destes povos daqui, que o Senhor te vai dar em propriedade. Deves condená-los à destruição completa: os hititas, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus tal como o Senhor, teu Deus, te ordenou”.

Na verdade, a diferença entre as duas traduções é sobre a ordem da carnificina e pouco mais. O que choca é o objetivo: matar ou escravizar. Explicam os exegetas citados por Frei Bento Domingues que há uma tensão entre a interpretação universalista da Bíblia e a outra interpretação nacionalista, com a linguagem de afirmação bélica de uma tribo, a de Israel, consagrada à destruição dos seus vizinhos por ambição territorial.

E conclui ele: “Eu tiro a minha conclusão: o iaveísmo histórico veicula uma teologia nacionalista, por vezes, de uma extrema violência. Coloca na boca de Deus os interesses de um povo contra os outros povos. Este nacionalismo religioso blasfema”.

Portanto, uma leitura deve excluir e até condenar a outra, mas ambas estão inscritas nos textos, onde se defrontarão o nacionalismo guerreiro e o universalismo humanista.

Voltemos então aos nossos jovens holandeses e à sua experiência de rua. Qualquer destes textos da Bíblia, lidos a partir de um livro cuja capa anunciasse o Corão, poderia servir para confirmar o preconceito de que os preceitos religiosos dos muçulmanos incentivam a violência ou até a mortandade dos opositores da sua fé ou de quem se comporta diferentemente das normas aí fixadas. No entanto, os textos citados são da Bíblia e apelam ao mesmo tipo de chacina.

Ora, como descobre Frei Bento Domingues, em muitos textos ancestrais e também na Bíblia podem encontrar-se justificações para ações de extermínio, revestindo de religião a ambição de domínio, de destruição e de guerra.

Portanto, não é no Corão que nasce o Califado; ele está presente em textos de todas as religiões monoteístas que surgiram no Médio Oriente, porventura sob outros nomes. Contra esse jogo de espelhos entre as religiões e os seus fanáticos, há duas considerações que surgirão necessariamente e acho que ambas são certas.

A primeira é que em nome da interpretação literal da Bíblia não se cometem hoje crimes desta natureza. Talvez seja verdade agora, mas não foi sempre. Em nome da unicidade da religião, a Igreja Católica incentivou no passado a violência sectária, ou outros poderes em seu nome geraram crimes abomináveis, exatamente reclamando uma leitura literal dos preceitos bíblicos (ou simplesmente invocando o poder de dominação a que aspiram). Isso seria o passado do presente que conhecemos.

A segunda é que a leitura dessas escrituras é, no caso do catolicismo, disciplinada por uma organização hierárquica rígida, a Igreja Católica, para o mal (Inquisição) e para superar esse tempo (o pós-Inquisição, ou até agora a abertura ecuménica do Papa Francisco, surpreendendo a Igreja).

Em contrapartida, no caso da religião muçulmana, não existe uma interpretação legitimada por um discurso e por uma organização única como fonte de poder centralizado. Portanto, podem surgir diversos discursos com novos enunciados, no limite até um projeto militar de ocupação territorial (o Califado), como o do Daesh.

Ambas as observações são fundamentadas em factos. Mas escapa-lhes o essencial, que é que o sucesso destas interpretações e chamamentos dependerá sempre do grau de desagregação de cada sociedade, ou da forma como nela se sentem as ameaças. 

Ou, por outras palavras, dependerá então de saber se se considera socialmente aceitável uma leitura literal de normas culturais construídas pela busca de sobrevivência ou poder de tribos do Médio Oriente de há cerca de 500 anos antes da nossa era, ou seja, de há mais de 2500 anos, num caso (a Bíblia), ou mais de mil anos, no outro caso (o Corão).

A raiz cultural do extremismo pode ser encontrada nas palavras de Moisés como em frases do Corão, bem como o seu contrário, e o que lemos hoje depende dos olhos de hoje. Mas é onde imperar a miséria e a desesperança que poderão fundamentar-se as leituras mais radicais de textos religiosos para enraizar o ódio aos outros.

O que porventura será mais assustador é que o mundo moderno não limita, antes parece incentivar, este extremismo e a sua fundamentação transcendente. No caso do mundo muçulmano, como dizia um estudioso do mundo árabe, Ziauddin Sardar, entrevistado pelo Público, essa literalização dos textos históricos já levou a um extremismo social desconexo do mundo, como o da Arábia Saudita, com o seu imenso poder do petróleo, dos dólares e das armas. Ou, nas palavras de Sardar, “o Estado Islâmico sempre existiu, é a Arábia Saudita”.

Ora, a Arábia Saudita é o principal ponto de apoio do poder imperial dos EUA na região, dos mesmos presidentes que em tom religioso terminam os seus discursos com “God bless America”, mesmo que não estejam a pensar no Deus do Corão. A política de uns e de outros alimentou, e muitas vezes deliberadamente, como no Iraque e na Síria, os monstros nascidos do sono da razão.

Os seus biombos justificativos escondem os tráficos de armas, de justificações e de políticas e mostram como os que consideramos serem os nossos homens de Estado, os moderados, são tão facilmente os criadores dos radicais iluminados por palavras incendiárias de textos que tantos consideram sagrados.

O mundo é, pois, mais complexo do que qualquer preconceito possa supor.

Sobre o/a autor(a): Francisco Louçã - Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Negociar e acomodar identidade religiosa na esfera pública"

Pesquisa científica comprova os benefícios do Johrei

A fé que vem da África – Por Angélica Moura