Especialista no mundo árabe apresenta o Islã para ocidentais

Paul Balta, especialista no mundo árabe e muçulmano, comenta os preconceitos contra o islamismo e apresenta ao mundo ocidental o Alcorão e suas nuances no livro , como religião, lei, moral, estilo de vida e cultura.

 “Escolhemos vinte ideias preconcebidas que dividimos em três capítulos: ‘História e Civilização’, ‘Religião e Sociedade’ e ‘O Islã e o Mundo Moderno’”, conta o autor. 

“Essa divisão permite-nos abordar alguns problemas essenciais a fim de demonstrar que, embora alguns desses preconceitos tragam em si elementos de verdade, o Islã não é em absoluto, contrariamente àquilo em que muitos creem, um todo fixo, imutável e intolerante”.

O livro faz parte da coleção , série que traz textos assinados por especialistas e acadêmicos em cada área, mas com abordagem didática, que vai de conceitos simples até os questionamentos e debates atuais sobre cada tema.

 “MAOMÉ É UM FALSO PROFETA?”

Eles adotaram a doutrina de um falso profeta [...]
Ele afirmava que uma nova Escritura
lhe fora jogada dos céus.
São João Damasceno (650-749)


Divulgação

Maomé nasceu por volta do ano de 570 de nossa era, em Meca, na Arábia desértica. Algumas tribos nômades de judeus e de cristãos se achavam instaladas nessa região, mas ela era povoada sobretudo por beduínos politeístas. Destes, a maior parte também era nômade, mas alguns viviam em cidades que eram pontos de passagem de caravanas, como a própria Meca, onde se veneravam mais de trezentos ídolos reunidos na Caaba, que já nessa época atraía numerosos peregrinos. 

Segundo a tradição, esse santuário havia sido edificado por Adão, destruído pelo Dilúvio e reconstruído por Abraão (com a ajuda de seu filho Ismael, o ancestral de todos os árabes), que encerrara em seu ponto mais sagrado a Pedra Negra, certamente um meteorito, mas que lhe fora lançado pelo arcanjo Gabriel.

Essa terra árida, encastelada entre o Mar Vermelho, o Golfo Pérsico e o oceano Índico, está cercada por países em que se desenvolveram as mais velhas civilizações, na sua maioria milenares: o Egito faraônico, a Etiópia convertida ao cristianismo, o Iêmen, a Mesopotâmia, onde a Bíblia situa o Paraíso Terrestre, a Pérsia e seu império, no qual dominava o zoroastrismo, uma religião monoteísta que não tinha a pretensão de ter sido revelada, mas que fora pregada pelo mago Zaratustra (660-583 a.C.), e o Império Bizantino, que mesmo em seu declínio era o herdeiro das tradições pagãs greco-romanas e do qual faziam parte especialmente a Síria e a Palestina (onde nasceu Jesus), na época povoadas principalmente por cristãos e por judeus. Desse modo, o profeta do Islã terá de se impor pela persuasão ou pela força, em um ambiente hostil, no qual deverá demonstrar que a nova religião é superior às outras. Ele pertencia à tribo dos Koraishitas, uma das mais poderosas estabelecidas em Meca. Era neto de Abdel Mutallib, chefe do clã dos Bani Hashem ou Hashimitas e filho de Abdallah e da bela Amina.

A tradição muçulmana envolve o nascimento de Maomé em uma série de eventos sobrenaturais: na data em que nasceu, o dia foi aureolado por uma luz divina, porque os anjos de Alá se haviam reunido ao redor da Caaba e apedrejavam os djinns, gênios malignos que eram temidos pelos beduínos. Além disso, as parteiras não chegaram a lhe cortar o cordão umbilical: Deus não somente o fez, como o recém-nascido já veio ao mundo limpo, porque os próprios anjos o haviam lavado. 

Finalmente, descobriram que seu pé deixava uma marca idêntica àquela que fora deixada pelo de Abraão sobre a Pedra Negra da Caaba. Cedo ficou órfão de pai, perdeu a mãe com a idade de dez anos e, logo a seguir, seu avô, que o havia recolhido. Abu Talib, seu tio paterno, então o chefe do clã dos Hashimitas, tornou-se seu tutor e o enviou em uma de suas caravanas, que era chefiada por seu próprio filho, chamado Ali. A caminho da Síria, eles encontraram o monge Bahirá, que vira em sonhos Maomé portando uma auréola e que o reconheceu, exclamando: “Tu és o Enviado de Deus, o Profeta que anunciará meu Livro santo, o Alcorão”. 

Após atingir a idade adulta, Maomé começou a dirigir as caravanas de Khadidja, uma rica viúva que ficou bastante satisfeita com a maneira como ele dirigia seus negócios e que o achava atraente, acabando por casar-se com ele no ano de 595. Ele tinha 25 anos na época, ela estava entre os 35 e os quarenta. Cerca de quinze anos mais tarde quando ele mesmo se aproximava dos quarenta, passou a subir durante as noites ao Monte Hira, nas cercanias de Meca, a fim de meditar. No ano de 611, o arcanjo Gabriel apresentou-se a ele e disse-lhe:

“Tu és o Enviado de Deus, o seu Profeta”. A seguir, o arcanjo ditou-lhe uma série de preceitos e ordenou-lhe que os retransmitisse. Foi a partir de então que ele começou sua pregação, e essas revelações formarão o Alcorão, em árabe Qur’na ou “Recitação”, composto por 114 suratas (capítulos), divididas em 6.226 versículos.

Os muçulmanos encaram esses eventos como sinais do céu e do caráter imutável do Islã, mas os judeus e cristãos consideram que se trata de superstições. Com exceção do patriarca Timóteo de Constantinopla (que exerceu o patriarcado entre 780 e 820), os Pais da Igreja negaram-lhe a condição de profeta; o abade Teófano da Síria (751-818), autor de uma biografia frequentemente citada no Ocidente, qualifica-o de “trapaceiro, bárbaro, inimigo de Deus, demoníaco, ateu, libertino, saqueador, sanguinário, blasfemo, estúpido, bestial e arrogante”. Mas quem foi ele na realidade? Maomé era um homem simples, que converteu inicialmente os seus parentes mais próximos, Khadidja, seu primo Ali, que mais tarde receberia a mão de sua filha Fátima [Fahima] em casamento, e as pessoas mais modestas, vendedores de água, libertos e escravos. 

O que ele proclamava com maior vigor era: “Deus é Único!” Sua reputação de “libertino” e “bestial” provém, sem a menor dúvida, de seus dez casamentos, celebrados após ter enviuvado de Khadidja, e do fato de que os ensinamentos do Alcorão absolutamente não condenavam o prazer físico entre os esposos, enquanto a Igreja Católica exigia a monogamia e condenava a sensualidade mesmo no matrimônio. 

Quanto a ser “inimigo de Deus”, não seria essa a impressão que causaria o pregador de uma nova fé àqueles sacerdotes que afirmavam ser os donos da verdade? Em Meca, ele provocou a hostilidade dos comerciantes, que temiam que ele desacreditasse os ídolos da Caaba e pusesse fim à peregrinação, fonte de seus lucros. Uma assembleia retirou-lhe a proteção da tribo; a partir desse momento, ele poderia ser morto por qualquer um, com a segurança de não enfrentar a retribuição da lei de talião.

Em 622, o oásis de Yathrib, que estava sendo esfacelado por rivalidades tribais, foi em busca de um mediador. Foi então que ele se dirigiu para lá, acompanhado por seus discípulos, denominados muslimum.Esta é a hijra, a “hégira”* ou “migração”, que marca o ano 1 do calendário muçulmano. Ele assinou com as tribos judias e cristãs um pacto denominado Constituição de Medina e, a partir de então, o oásis de Yathrib ganhou o nome de Madinat el Nabi, a “Cidade do Profeta”. Tornou-se, assim, chefe político, legislador e comandante militar que passou a edificar o recém-criado estado islâmico. Ele substituiu as leis tribais e as alianças derivadas dos laços de sangue, que eram então honrados pelos beduínos, pelo conceito de ummá ou “comunidade” dos muçulmanos, que devem ser solidários e proteger-se mutuamente, qualquer que seja sua origem ou a cor de sua pele, uma ideia revolucionária para a época. Sua pregação inscrevia-se na tradição abraâmica, conforme atestam os títulos e conteúdos de várias suratas, como “José”, “Maria”, “Os Profetas”, “O Homem” ou “A Ressurreição”. 

Muitas vezes, o Alcorão refere-se tanto ao Velho Testamento quanto aos Evangelhos. Maria é considerada a mãe virgem de Jesus, assim como entre os cristãos. Contudo, aqui se encontra a diferença fundamental: Jesus é um grande profeta, autor de todos os milagres relatados no Novo Testamento, mas não é “o Filho de Deus”, porque “Deus nem gerou, nem foi gerado”. Tampouco morreu sobre a cruz. Para o Alcorão – que é a Palavra de Deus -, judeus e cristãos desnaturaram a Revelação. Por esse motivo, Maomé é “o Selo dos profetas”, enviado para purificar a Revelação até o final dos tempos.

Além de ser um resumo teológico que expõe todos os dogmas, o Alcorão é também um código jurídico e social, um tratado de moral e um manual de comportamento. Para atestar seu caráter de revelação, os muçulmanos assinalam o fato de que o Profeta não sabia ler nem escrever. Os Pais da Igreja concluíram, bem ao contrário, que não passava de um “impostor”. Os muçulmanos sustentam que seu livro santo é “inimitável” e, até tempos bastante recentes, julgavam todas as traduções como sendo “sacrílegas”. 

Por outro lado, o Alcorão deu lugar a um grande debate teológico entre os próprios maometanos: ele foi “criado” ou “incriado”? A maioria dos ulemás (sábios religiosos ou teólogos) concluiu que, uma vez que Deus é eterno, o Alcorão é igualmente “incriado e eterno”, embora as letras com que foi escrito tenham sido “criadas”. Os companheiros do Profeta tinham decorado as mensagens do Criador e, aos poucos, foram anotando-as em pedras chatas ou em pedaços de couro para ajudar a memória. 

Foi o califa Othman (reinante de 644 a 656) quem ordenou, em 652, que fosse registrada a versão do texto em vigor até os dias de hoje, determinando que fossem reunidas por ordem de tamanho decrescente, e não cronologicamente, para suprimir as disputas. Os teólogos acreditam que, tal como foi feito com relação à Bíblia judaica e aos Evangelhos, devam-se fazer estudos críticos do Alcorão, a fim de identificar erros cometidos pelos homens antes do estabelecimento de sua redação final. Essa tarefa vem sendo realizada por um grupo de estudiosos que são denominados “os novos pensadores do Islã”.

Os julgamentos negativos pregados pelos Pais da Igreja prevaleceram por longo tempo através do Ocidente e, em A divina comédia, Dante Alighieri coloca Maomé nas profundezas do inferno. Não obstante, escritores como Jean-Jacques Rousseau o reabilitaram para a cultura europeia. Lamartine escreveu:

Este é Maomé: filósofo, orador, apóstolo, legislador, guerreiro, conquistador de ideias, restaurador de dogmas, fundador de vinte impérios terrestres e de um império espiritual. Qualquer que seja a escala que se use para medir a grandeza humana, esse homem foi muito grande! (Histoire de la Turquie, 1833.)

A própria Igreja Católica há bastante tempo se propôs a revisar suas posições. O Concílio Vaticano II (1962-1965), o mesmo que exonerou o povo judeu do crime de “deicídio”, defendeu igualmente o diálogo islamita-cristão, reconhecendo implicitamente o caráter profético de Maomé. João Paulo II deu um passo suplementar, em abril de 2001, quando foi o primeiro papa a entrar oficialmente em uma mesquita, a dos sultões da dinastia dos Omíadas, em Damasco, na Síria.

Autor: Paul Balta
Editora: L&PM Pocket
Páginas: 144

Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha. Texto baseado em informações fornecidas pela editora/distribuidora da obra.



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