Hipocrisia sem cortinas – Por Washington Araújo

E desse diálogo o mundo poderia, ou não, ser sacudido por horrores inimagináveis. Os horrores de uma catástrofe nuclear dizimando cidades inteiras, desmantelando o tênue equilíbrio mundial entre Norte e Sul, capitalismo e socialismo, democracia e autoritarismo. 

Estados Unidos e União Soviética. A esse conjunto de ameaças à paz internacional historiadores deram o nome de Guerra Fria. Como pano de fundo uma expressão que sobressaía: "cortina de ferro”.

Em fins de 1980 e por toda a década de 1990, nossas piores inquietações foram colocadas em segundo plano. Saíam da cena internacional a Guerra Fria, a cortina de ferro e o perigo nuclear. A derrubada do muro de Berlim, em novembro de 1989, assinalava o fim de longo, e estéril, debate ideológico. 

A União Soviética se desmilinguia, experiências totalitárias ganhavam sobrevida apenas no trabalho dos historiadores. E despontava como ator econômico global proeminente a China. Tinha início o espetáculo da globalização. No cenário surgia a ‘cortina de bambu’.

No vácuo da luta ideológica, em que, ao fim, não existiram vencedores e sim perdedores em maior ou menor escala e de acordo com o ângulo que se deseje priorizar, se impôs o verdadeiro debate, os poucos ricos e os muitos pobres. 

A estatística incômoda celebrando não o fim da História (Francis Fukuyama) e sim o início de uma Outra História (Shoghi Effendi) e tendo como pano de fundo a constatação que 2/3 da humanidade é vítima de fome e miséria, enfermidades, desemprego e instabilidade política e social. 

Em meio à descoberta de tantos fracassos econômicos, focos de sistêmica corrupção no âmago do sistema econômico capitalista, apresenta-se ante o mundo um outro cenário, mais desolador e aflitivo. É no Irã que percebemos cair sobre o mundo a pesada ‘cortina de hipocrisia’.

À falta de uma contraparte ao conglomerado que reúne Comunidade Europeia, Estados Unidos e América Latina dotou o Irã de visibilidade singular. O país persa, um dos berços da história da humanidade passou a ser encarado como contraponto às mazelas ocidentais e como porta-voz dos condenados da Terra. Nada mais fantasioso e insustentável. 

O Irã tem pés, corpo, e cabeça de barro: executa 20 vezes mais pessoas por ano que a China, assume liderança inconteste da barbárie humana ao ser o Estado nacional que mais assassina seres humanos per capita do planeta, são 350 indivíduos para uma população de 78 milhões de habitantes. Com estes números, o Irã supera a China que, com população estimada em 1,5 bilhão, assassina média de 400 indivíduos anualmente.

O Ocidente, ao colocar sobre o Irã apenas o viés nuclear, erra duplamente. Isso porque descerra a hipocrisia internacional que contrapõem mais de duas dúzias de países, nucleares a dezenas de países não nucleares. 

E que falta faz ao mundo o estabelecimento de uma ética global, uma ética em que os reais interesses da espécie humana não continuem sendo pisoteados por não mais que um punhado de nações. E também porque retira dos holofotes a questão que não pode mais calar: os horrores da perseguição religiosa que continua intermitente e oculta sob a espessa cortina... de hipocrisia. 

Não são apenas os membros da comunidade bahá´í, que são espoliados de seus direitos humanos fundamentais, mas são, de longe, a mais longeva e tirânica opressão contra todos os adeptos de uma única crença religiosa. 

Os primórdios do fanatismo religioso datam de maio de 1844 e mais de 20.000 vidas foram barbaramente interrompidas desde então. São 169 anos de execuções sumárias, prisões arbitrárias e sem qualquer a observância de qualquer "devido processo legal”, além de lugares sagrados destruídos, cemitérios profanados, bens confiscados. Mais recentemente levas de jovens bahá´ís têm sido expulsos de instituições de ensino superior por todo o país persa.

Recentemente, o governo iraniano vem se utilizando de todas as oportunidades no cenário internacional para expressar sentimentos que parecem sinalizar não apenas um desejo por mudanças nas relações do Irã com a comunidade das nações, mas também uma compreensão da necessidade de melhorar sua postura com relação aos seus cidadãos. 

Sinal disso foi o telefonema do presidente Hassan Rouhani ao dos Estados Unidos, Barack Obama, quando de sua viagem a New York para, da América, falar e participar da Assembleia Geral das Nações Unidas. É fato que mais de uma dezena de prisioneiros de consciência foram libertados das prisões iranianas, além da libertação de um grande número de outros tipos de prisioneiros.

Por trás da cortina de hipocrisia, a mídia vem apresentando uma série de relatos que indicam que a situação de direitos humanos no país, na verdade, piorou, nas últimas semanas. Além disso, nem um único prisioneiro bahá’í foi incluído entre os libertados. 

Infelizmente, de concreto mesmo não há indicação alguma de alteração na velha atitude do governo iraniano em relação à liberdade de pensamento, consciência e crença.

Enquanto o foco do mundo seguir o míope maniqueísmo Irã-nuclear/Irã-não nuclear, milhares de pessoas continuarão vítimas de políticas de Estado bárbaras e poderão não contar nem ao menos com... um céu que lhes proteja.






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