Por que a cristandade europeia foi tão importante para a fé – Por Thomas Storck


Hilaire Belloc é famoso (ou infame, para alguns) por uma afirmação de seu livro “A Europa e a Fé”: "A fé é a Europa e a Europa é a  fé" [1].

É claro que Belloc, como qualquer homem inteligente, sabia muito bem que esta afirmação não era literalmente verdadeira, pelo menos não no sentido estatístico: havia milhões de católicos fora da Europa e milhões de não católicos na Europa. 

Este é o caso ainda hoje, inclusive mais do que quando Belloc escreveu. Mas existe um sentido em que essa afirmação é verdadeira: a Europa é o lugar em que, por providência de Deus, a fé teve tempo e espaço para se desenvolver intelectual e culturalmente até formar a cristandade, o sinal externo e visível do trabalho interno e invisível de Deus nas almas humanas.

Embora a órbita cultural da Igreja tenha incluído originalmente partes da África e da Ásia, e apesar de muitos dos primeiros e mais importantes Padres e teólogos da Igreja serem do norte da África ou do Oriente Médio, essas áreas foram até certo ponto cortadas do contato com o resto do mundo católico depois das invasões maometanas. No caso da África setentrional latina, a Igreja acabou por desaparecer de todo. A Europa se tornou, assim, o único lugar onde, mesmo em meio a muitas dificuldades, a vida católica pôde se desenvolver de forma mais ou menos natural e própria. 

É correto dizer, neste sentido, que “a fé é a Europa e a Europa é a fé”, porque foi somente no Velho Continente que a vida social e cultural católica teve a chance de amadurecer, dando ao continente uma unidade cultural que provavelmente não teria se constituído sem a cristandade.

Essa manifestação social e cultural exterior da fé católica sempre foi característica da Igreja. Salvo em casos de perseguição, o normal foi o estabelecimento de uma ordem social católica, a ponto de darmos por incontestável o número imenso de expressões intelectuais, literárias, artísticas, musicais, arquitetônicas e de outras manifestações da fé católica que nasceram dentro da cristandade. Mas há um elemento adicional e quase sempre necessário nesta expressão externa da fé: o aspecto político. 

Desde o reconhecimento inicial da Igreja pelo Imperador Constantino através do Edito de Milão, a Igreja católica desfrutou de uma relação complexa com os vários poderes políticos do mundo. Antes de Constantino, a Igreja era objeto de perseguição por parte do governo romano.

Com o Edito de Milão, porém, tudo mudou. O governo se tornou, em certo sentido, patrono e protetor da Igreja. Que esse vínculo teve um lado negativo, ninguém pode negar. Mas que foi o meio providencial para proteger a Igreja e permitir o desenvolvimento da civilização cristã é igualmente inegável. É desconcertante avaliar certas instâncias particulares dessa complexa relação com os poderes do mundo, relação muitas vezes positiva e negativa ao mesmo tempo. O necessário, considero eu, é evitar tanto a condenação integral dessa relação quanto o não reconhecimento ou a minimização dos seus aspectos negativos.

Ao avaliar os prós e contras da relação política que muitos governantes mantiveram com a Igreja ao longo dos séculos, devemos lembrar que, sem esse tipo de proteção, as culturas católicas dificilmente teriam conseguido se desenvolver. Deixo para abordar a situação contemporânea mais adiante; falando do passado, porém, até algumas centenas de anos atrás, os triunfos militares ou políticos de poderes anticatólicos acarretavam geralmente a perseguição contra a Igreja, a destruição das manifestações externas de vida católica e, muitas vezes, a morte lenta da fé na vida privada dos indivíduos.

A célebre afirmação de Tertuliano de que “o sangue dos mártires é semente da Igreja” se mostrou verdadeira em vários contextos, mas não pode ser considerada um axioma aplicável acriticamente a todos os tempos e lugares. 

Nas terras conquistadas pelos muçulmanos ou nas partes da Europa que abraçaram o protestantismo, a Igreja foi submetida a diferentes graus e tipos de perseguição e, em alguns casos, o organismo católico foi reduzido a nada. Isto salienta que, qualquer que seja o dano provocado pela proteção do Estado à Igreja, continua sendo verdade que ela também proporciona o espaço necessário para que a Igreja e a vida católica existam e se desenvolvam. 

A triste situação da Igreja na Europa católica é tomada muitas vezes como “prova” de que, em última análise, a proteção oficial faz mais mal do que bem, mas, comparando-se a Europa latina de hoje com terras outrora católicas como a Escandinávia e a Ásia Menor, podemos concluir que mais de uma opinião é possível.

Houve na Europa cristã uma sucessão de poderes políticos que ofereceram esse patrocínio até o século XIX, embora de modo cada vez menos consistente à medida que os séculos passavam: o Império Romano, tanto ocidental quanto oriental; o Império Franco de Carlos Magno; a maioria dos reinos europeus durante a Idade Média; a Espanha dos Habsburgo, juntamente com o Sacro Império Romano, e, por último, a França. Durante esse tempo, é claro, a Igreja perdeu grandes partes da Europa na revolta protestante, quase ao mesmo tempo em que começava a expansão católica para o Novo Mundo e para partes da Ásia e da África.

Necessariamente, a vida católica nessas regiões derivou da vida católica europeia. Em uma região, particularmente, houve tempo e recursos suficientes para a criação de uma verdadeira nova província da cristandade: a América Latina, onde surgiu uma cultura católica barroca, certamente transplantada da Europa em suas linhas principais, mas desenvolvida em um novo ambiente e entre novos povos.

Christopher Dawson escreveu:
 
"Nenhum lugar exibe a vitalidade e a fecundidade da cultura barroca melhor do que o México e a América do Sul, que experimentaram um rico florescimento de estilos regionais de arte e arquitetura, alguns com influência indígena considerável. Este poder da cultura barroca de assimilar influências exteriores é um dos seus traços característicos, que a distingue nitidamente da cultura e do estilo artístico do âmbito anglo-americano" [2].

Este poder assimilador do barroco espanhol foi tão grande que, no tocante à música, outro estudioso chegou a afirmar:
 
"É muito difícil, na Bolívia, no Peru e no Equador, separar os elementos musicais de origem indígena dos de tradição europeia... Os elementos das duas culturas se combinaram para formar unidades inseparáveis" [3].

A América Latina, por um lado, ofereceu espaço para o desenvolvimento cultural católico, mas, por outro, como todas as terras recém-descobertas ou colonizadas, continuou a depender política e intelectualmente da Europa.

Já na Europa, como observei antes, países importantes e cada vez mais poderosos tinham se desligado da unidade católica. A Inglaterra protestante, junto com a Holanda e, durante um tempo, com a Suécia, passou a ser a central europeia de destruição da civilização católica. Esses países se tornaram não só rivais políticos e militares das potências católicas, mas erigiram um modelo alternativo de vida cultural ocidental que tem exercido um poderoso apelo intelectual.

Os Estados Unidos se transformaram, posteriormente, na base mundial da cultura protestante. Belloc escreveu a respeito: 

"A força da cultura protestante encontra-se agora fora da Europa, nos Estados Unidos" [4]. Essas várias potências protestantes trabalharam para conquistar porções de territórios católicos no mundo todo, com o envio de missionários protestantes para a América Latina e outros países católicos. Eles têm contribuído para a destruição da fé e da cultura católica, mas, talvez mais significativo do que isso, têm oferecido um modelo alternativo de cultura ocidental que apela fortemente ao materialismo moderno. O crescente poderio e riqueza industrial deste modelo oferece argumentos espúrios a seu favor, resumidos por Belloc nas seguintes palavras:
 
"A Igreja Católica é falsa porque as nações de cultura católica têm decrescido de forma constante em riqueza material e em poder, contrastando com as nações de cultura anticatólica, ou, neste caso particular, de cultura protestante" [5].

Embora hoje em dia nem a Grã-Bretanha nem os Estados Unidos tenham qualquer interesse, como nações, na teologia protestante, ambos continuam se opondo reflexivamente aos interesses católicos ou a quaisquer remanescentes de cultura católica no mundo atual. Aliás, parte do sentimento anti-hispânico de tantos anglo-americanos, inclusive católicos, tem raiz no sentimento de superioridade cultural da civilização protestante.

Em termos gerais, a civilização protestante ainda existe hoje como força de apoio (não me refiro ao protestantismo como religião, mas à cultura protestante);já um poder católico, neste sentido, não existe. Com a exceção parcial e frágil de alguns países latino-americanos [6], a cultura da Igreja católica não têm verdadeiras propostas políticas hoje. No final do século XIX, o papa Leão XIII e outros pensadores católicos de vasta visão perceberam que a Igreja não poderia mais depender de príncipes católicos para garantir apoio externo. Tanto no campo cultural quanto no político, passaria a ser a massa do povo católico, residente cada vez mais em regimes democráticos e com voz em seus governos, quem constituiria o apoio externo da Igreja. E esse novo arranjo pareceu funcionar razoavelmente bem. O último terço do século XIX e a primeira metade do século XX foram um dos períodos mais brilhantes do pensamento e das letras católicas, da filosofia, dos esforços dos papas Pio X a Pio XII para concretizar o potencial da liturgia como escola de vida cristã. Apesar das interrupções causadas pelas duas guerras mundiais, o pensamento católico exerceu influência política em mais de um país;houve partidos políticos católicos, oficiais ou não; e alguns regimes se dedicaram, mais ou menos conscientemente, a realizar um programa católico de políticas públicas; mesmo nos países protestantes, a vida popular católica florescia em grande variedade de associações e instituições e os católicos chegaram a exercer considerável influência no processo político.

Infelizmente, na segunda metade do século XX, a Igreja infligiu a si mesma, de modo deliberado e incompreensível, um grave ferimento. Os documentos conciliares como tais, apesar de algumas ambiguidades, não são problemáticos; mas parece haver uma razoável percepção de que a condução do concílio Vaticano II e, mais ainda, a sua aplicação e o pós-concílio provocaram um desastre pastoral, intelectual e institucional para a Igreja. Como resultado desse desastre, a vida católica popular que já existia foi destruída em grande parte. A cultura católica é muito mais ampla do que simplesmente a recepção dos sacramentos e da catequese, mas depende de elementos formais de vida católica, sem os quais ela não pode durar.

É difícil, assim, imaginar qualquer saída desta nossa situação atual, já que tanto o lado formal quanto o popular da vida católica foram afetados. Como podemos responder a esta situação em que a Igreja não goza do apoio de nenhum governo poderoso nem exerce um entusiasmo vasto e leal no povo católico? Em circunstâncias assim, como manter, alimentar e estendera Igreja e a vida católica?

Infelizmente, as medidas que podem ser sugeridas para esse fim parecem muito inadequadas. Uma liturgia bela e historicamente enraizada; o cultivo deliberado de uma consciência da tradição intelectual católica, incluindo a ênfase na doutrina social da Igreja; escolas católicas novas ou restauradas em todos os níveis; educação popular constante através da mídia...Estes estão, para mim, entre os meios principais possíveis e com esperança de sucesso. Mas nenhum deles é fácil de desenvolver. Além disso, dos que já foram iniciados, muitos estão mais do que contaminados por influências externas: nos EUA, por exemplo, há contaminação vinda de compromissos fatais com a visão de mundo do liberalismo clássico por parte de católicos incapazes de distinguir entre a visão católica da ordem social e a visão do liberalismo clássico, simplesmente porque este último parece estar em desacordo com a trajetória de um liberalismo mais recente e, obviamente, prejudicial. Que ambas as formas de liberalismo estão enraizadas nos mesmos erros é coisa aparentemente impossível de entender para muitos.

Eu não tenho grandes esperanças para o futuro imediato. No longo prazo, não há dúvida nem deve haver medo, pois Jesus Cristo é a cabeça da Igreja e a Igreja é o seu Corpo Místico. Quanto tempo significa esse “longo prazo”? Seja pouco, seja muito, o fato é que não está em nossas mãos. Enquanto isso, o sucesso não deve ser a regra da nossa atividade, mas sim a fidelidade: fidelidade ao mandado que o Fundador deu à Igreja de sair para o mundo e pregar o Evangelho a toda criatura.


[1] Rockford: TAN, [1920] 1992, pág. 2.
[2]  The Dividing of Christendom; Garden City: Image, 1967, pág. 162.
[3]  Bruno Nettl, Folk and Traditional Music of the Western Continents; Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 2ª ed., 1973, pág. 191.
[4] The Two Cultures of the West, in Essays of a Catholic; Rockford: TAN [1931] 1992, pág. 244.
[5] Survivals and New Arrivals; Londres: Sheed & Ward, 1939, pág. 80.
[6] Quando a Argentina escolheu a data de 25 de março como Dia da Criança Ainda Não Nascida, para simbolizar a sua rejeição ao aborto, o presidente Carlos Menem escreveu aos chefes de Estado de todos os países latino-americanos, além de Espanha, Portugal e Filipinas, convidando-os a aderir. Ele observou que "as raízes históricas comuns dos nossos países nos unem não só em questões de linguagem, mas também na compreensão do homem e da sociedade baseada na dignidade fundamental da pessoa humana" (Catholic World News, 25/03/1999). É um eco do antigo status do mundo hispânico em seu papel de baluarte geopolítico do catolicismo.




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