"O livro é o único lugar em que a religião é um factor de paz"


Na primeira mesa-redonda do Diáspora-Festival Literário de Belmonte, editor e escritor Francisco José Viegas e o sheik David Munir falaram sobre o papel do livro nas religiões.

O livro sagrado, Bíblia, Tora ou Alcorão, é “o único lugar em que a religião é um factor de paz”, defendeu o escritor Francisco José Viegas, num debate sobre o papel do livro nas principais religiões.

O autor, convidado para representar o Judaísmo, falava na sexta-feira à noite na primeira mesa-redonda do Diáspora-Festival Literário de Belmonte, cuja primeira edição decorre até domingo naquela vila histórica, a única comunidade peninsular reconhecida como herdeira legítima da antiga presença histórica dos judeus sefarditas, tendo conseguido, durante a Inquisição, preservar muitos dos ritos, orações e relações sociais.

“Nós pensamos sempre que a religião é um factor de paz, e eu comecei a pensar (...) mas o que é que a religião tem que ver com a paz? Para os judeus, o mundo nasceu há 5712 anos, e quantas guerras, quanta tortura, quantos apedrejamentos aconteceram desde então, em nome da religião? Nós estamos a insistir numa coisa que não é verdade”, frisou o autor, na primeira sessão do encontro, realizada na Igreja Matriz de Belmonte.

Segundo o escritor e editor, os livros sagrados “falam sempre de coisas antigas, coisas fora de moda, como a criação do mundo”, não falam do mundo actual, “e nós continuamos a acreditar nas coisas antigas”.

“Aquilo que nos salva é o livro, depois de chegarmos à conclusão de que já matámos gente suficiente por causa das religiões, mesmo que seja o livro em nome do qual uma parte dos nossos semelhantes anda a matar outros”, observou.

“Para mim, a religião foi uma espécie de assentamento no deserto. Talvez precisasse desse recolhimento ao livro, que é fundamental. Não há uma grande tradição cristã de leitura da Bíblia, pelo contrário, as autoridades religiosas perseguiam as pessoas que tinham Bíblias em casa”, referiu.

Em contrapartida, “no Islão, as pessoas lêem o Alcorão, são incentivadas a ler e a compreender o seu livro sagrado”, comentou, acrescentando: 

“Há duas coisas que nós intuitivamente sabemos que são diferentes, a religião e o sentimento religioso, que é intuitivo, naturalmente, mas exactamente por isso é que precisamos de o fixar em palavras”.

Para Francisco José Viegas, “o que não se deve fazer não é não falar do livro sem o ler, o que não se deve fazer é parar de ler o livro”.

“Isto é que é, para mim, o enigma, o que nos leva a continuar ligados ao livro, depois de sabermos o que muita gente ligada ao livro fez ao longo da história, e continua a fazer, ou seja, continuamos a acreditar que qualquer coisa é possível”, sublinhou.

“E, no fundo, as pessoas que passaram por esta experiência sabem que qualquer experiência religiosa é preferível a não ter nenhuma”, acrescentou, salientando, contudo, que “uma coisa é viver o livro, outra é viver de acordo com o livro”.

Em representação do Islão, o sheik David Munir, imã da Mesquita de Lisboa, sublinhou a importância de se continuar a ler o Alcorão, de preferência em árabe, porque “tradução é traição”, porque só daí virá o conhecimento e, com ele, o fim das interpretações distorcidas que dele são feitas em vários países islâmicos.

Deu como exemplo a Arábia Saudita, onde as mulheres são proibidas de conduzir e, se forem apanhadas, são punidas com a pena máxima, a pena de morte, ou o Kuwait, onde não podem votar, votando os maridos por elas.

“Nada disso está no Alcorão, o profeta acabou com uma prática comum em Meca: quando nasciam meninas, os pais enterravam-nas vivas, porque sabiam que elas não teriam nenhum direito”, frisou.

“O Islão deu vida às mulheres há 1436 anos, o Islão declarou: Homens e mulheres são iguais”, defendeu. Sobre a importância do Alcorão, o sheik advogou a necessidade de se continuar a ler o livro.

“O Alcorão é um oceano, é uma enciclopédia, quanto mais lemos, maior é o conhecimento. O Alcorão é o livro que nos ensina, todos os livros nos ensinam, o livro é o nosso melhor amigo”, insistiu.

O padre Carlos Lourenço, pároco de Belmonte, encarregado de moderar o debate, defendeu a importância do livro sagrado, qualquer que ele seja.

“O livro não tem um papel simbólico, tem um papel muito real. Seja o Alcorão, a Bíblia ou a Tora, o livro é fundamental para quem queira ter uma relação com Deus. Mas a Igreja Católica fechou o livro e, em geral, os católicos conhecem pouco a Bíblia”, observou.


“Claro que a Bíblia, como sabeis, está feita de lendas, de tradições, e é preciso lê-la e interpretá-la”, concluiu.



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