Director do "Inimigo Público": "O objectivo é disseminar o medo" - Por João Carlos Malta


Luís Pedro Nunes dirige um jornal satírico como o francês "Charlie Hebdo", atacado esta quarta-feira. 

"O dia de hoje marca uma mudança no que são as democracias ocidentais", diz em entrevista.

Luís Pedro Nunes é director do jornal satírico: "Inimigo Público" e um leitor assíduo do "Charlie Hebdo". Classifica os seus jornalistas como "loucos da aldeia" e que têm tido uma resistência que foge à capacidade de compreensão. Não é certo que mesmo depois do ataque desta quarta-feira, que fez pelo menos 12 mortos, desistam. 

Em relação ao atentado, o jornalista diz que já era esperado um ataque deste género sobre às democracias ocidentais. A surpresa foi não ter sido perpetrado contra um jornal de referência ou um parlamento, mas contra uma publicação "decadente" que vive dos escândalos que promove.

Ainda assim, há algo relativamente certo: há um antes e um depois deste episódio para a sociedade europeia e para valores como a liberdade de expressão.

Luís Pedro Nunes diz que existe alguma autocensura quando os temas são religiosos. E dá o seu próprio caso: primeiro, o "Inimigo Público" vive num espaço arrendado noutro jornal e não quer pôr a casa que ao alberga no meio de uma "intifada". Depois, porque quer manter como até agora a independência em relação à direcção do "Público". 

Estaremos a viver um novo capítulo para a liberdade de imprensa na Europa? Luís Pedro Nunes não tem uma resposta, apenas o desejo de que tal não aconteça.

Diz que os especialistas na sátira, os "anormais", vão continuar por aí a publicar as suas piadas e cartoons provocatórios. A loucura que os move não os demove perante nada. Mas teme que o efeito sobre "os normais" seja nefasto. E que tenha sobre as democracias na Europa um efeito devastador nos seus valores fundadores.

Qual o significado dos acontecimentos desta manhã em Paris, na redacção do Charlie Hebdo (CH)? 

Estamos a partir do princípio que se trata de um atentado por parte do autodenominado Estado Islâmico. Não gosto da expressão porque não é nenhum estado, trata-se de um grupo de terroristas que se apoderou de uma parte de um território de um país. É evidente que o dia de hoje marca uma mudança no que são as democracias ocidentais. Esperava-se um atentado há algum tempo. Mas, ao invés desse atentado ser efectuado num jornal de referência, ou contra um símbolo da democracia como um parlamento, acaba por ser efectuado num velho e até há pouco tempo decadente jornal satírico. Ainda por cima anarquista e iconoclasta que tem passado as últimas décadas a fazer caricaturas de todos os símbolos da nação francesa e de todas as religiões.

Isto demonstra o nível de barbárie e a incapacidade de lidar com qualquer valor que têm estes grupos com que estamos actualmente a lidar. Não tem paralelo nas últimas décadas, nem com a Al-Qaeda, nem com os grupos que andaram atrás de escritores como o Salman Rushdie. Isto é um novo nível de violência e de incapacidade civilizacional com que estamos a lidar. Hoje é um dia em que há uma ruptura e um choque com um novo nível de barbárie que não estávamos preparados como democracias. E que pode ter consequências um pouco bizarras na própria democracia francesa. 

O que aconteceu, e ainda estamos muito a quente, terá consequências para o jornalismo e, mais especificamente, o jornalismo satírico? Consegue ver à luz do que sabemos agora quais serão essas mudanças? 

Ao nível do jornalismo satírico, não sei. Daquilo que conheço do jornalismo satírico, esta gente tem um grau elevado de loucura e de incapacidade de ser domado. São os loucos da aldeia que têm sempre uma grande capacidade de sobreviver. Aquilo que me preocupa são as camadas mais pacificadas e menos resistentes das sociedades democráticas. 

Estamos num momento em que a sociedade francesa está numa vertigem de olhar para a extrema-direita e de recear o novo e o estranho. Este tipo de acontecimentos têm mais repercussão ao nível do que são "os normais" do que são "os anormais", como são os jornalistas do "Charlie Hebdo". Esses têm uma capacidade de sobreviver ao mau e à violência. Há uma renovação constante em termos de jornalismo satírico. É gente muito estranha. Tenho acompanhado este semanário e a capacidade de resistência às pressões, aos atentados e a intimidação que este jornal tem tido, é extraordinário.

Mas o mais problemático são os efeitos que estes atentados poderão ter na própria sociedade. Isso sim levanta uma série de novas questões e as democracias não têm a resistência que deviam e poderiam ter perante o medo que poderá resultar deste dia. 

A política do medo em França, incorporada pela Frente Nacional, terá agora terreno mais fértil para florescer? 

Não sei se irá acontecer, mas o objectivo é esse. Querem criar medo. Ultimamente quando este tipo de grupo faz um acto com esta dimensão consegue alcançar os seus objectivos. O meu desejo é que não consigam. São pessoas que têm objectivos muito contrários aos que consideramos ser os nossos objectivos civilizacionais. 

No Estado Islâmico, percebemos que as pessoas que vêm da Europa são as responsáveis pelos actos mais violentos perpetrados por esse grupo. São histórias verdadeiramente macabras e que estão a ser transportadas para a Europa com a intenção de incutir o medo, levarem-nos a assustarmo-nos e a fecharmo-nos. A negar os nossos próprios valores. 

Não sei se será isso que acontecerá em França. Mas duvido que, pelo menos, gente como aquela que constitui a redacção do "Charlie Hebdo" e outras publicações digitais se vá assustar com isto. É gente que tem um processo mental que eu próprio admiro, mas não consigo acompanhar. São de tal forma anarquistas e iconoclastas que irão por aí a ironizar a sua própria condição daqui a algum tempo. 

É um seguidor do trabalho desta publicação. O que é o "Charlie Hebdo"?

Se não fossem as polémicas em que se têm envolvido, já se tinha diluído um pouco naquilo que é esta nova realidade digital. São iconoclastas, anti-religião, vão atrás do choque. 

Antes ligados à esquerda e à extrema-esquerda, neste momento são apenas anarquistas puros e duros,
 e os fanatismos lidam muito mal com isso. A sociedade democrática precisa de algumas válvulas de escape. Precisamos de ter pontos de fuga e o "Charlie Hebdo" é um desses pontos, um pequeno espaço em que tudo é possível. E em que tudo acontece. Não é possível que sociedades fundamentalistas aceitem algo assim e por isso aconteceu o que aconteceu. 

Descreveu os jornalistas do "Charlie Hebdo" como "loucos da aldeia". É possível continuarem depois de tudo isto? Ou é uma machadada à coragem que já ultrapassou um atentado à redacção em Novembro de 2011? 

Não sei, ainda é um pouco difícil. Acredito que se puderem vão continuar. Não sei qual o grau de dizimação da redacção. Mas só se não puderem mesmo.

Como director de um jornal satírico, o "Inimigo Público", na hora de abordar os temas da religião, ou mais especificamente os do Islão, alguma vez teve de exercer uma autocensura ou foi censurado de uma outra forma? 

A minha condição é diferenciada. Estamos dentro de outro jornal, o "Público", que não tem nenhuma influência editorial nos meus conteúdos. No entanto, eu sei que se fizer algo que me provoque uma intifada ou uma "fatwa" [condenação à morte] não será contra mim, mas contra a directora do jornal Público. Sou eu que coloco essa autocensura, não tenho problemas nenhum em o dizer. Não quero pôr os meus conteúdos à apreciação da direcção do jornal. Quero ser o gestor dos meus conteúdos. 

E não quero colocar o jornal no qual arrendo um espaço numa situação de perigo físico por uma decisão que não coloquei à apreciação da direcção do jornal. 

Essa limitação.... 

Não é uma limitação, é uma situação diferenciada. É como estar numa casa de campo a fazer uma festa [o caso do "Charlie Hebdo"] ou estar a fazer uma festa dentro do apartamento de um prédio ["Inimigo Público"]. São coisas diferentes.

Então, no abstracto, deve ou não haver limites à representação de líderes religiosos para a imprensa satírica? 

Tudo depende da perspectiva. Para uma revista anarquista obviamente que não. Tudo depende de qual o objectivo do humor. Não há verdades absolutas. À partida diria que não, em termos práticos depende de quais os conteúdos e quais os objectivos. 

O CH é uma publicação que compra quem quer, vê quem quer. O "Inimigo Público" já não é assim porque está dentro de um jornal. Tenho de respeitar o leitor do "Público". As questões dos limites do humor devem sempre ser contextualizadas.

Tudo isto levará a uma nova era na liberdade de imprensa na Europa? 

É muito difícil perceber isso num momento destes. Espero que não. E, se acontecer, que seja para as pessoas reflictam se não estão a ter um duplo "standard" quando falam dos muçulmanos do que quando falam dos católicos. Hoje em dia há muito mais receio a falar de muçulmanos do que de católicos. Isto não tem a ver com islamofobia, tem mais a ver com receio de causar danos ao seu próprio meio de comunicação social ou à comunidade. Isto tem vindo a crescer na sociedade europeia que não quer ver isto. Não tenho problemas com o Islão, apenas com fanatismos.






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