Brasil: país religiosamente plural – Por Clemir Fernandes


 Que o Brasil é um país religioso ninguém nega. 

E mesmo que houvesse dúvida, qualquer pessoa pode constatar, sem muito esforço, a forte presença da religião por meio de símbolos e manifestações típicas de religiosidade tanto em logradouros públicos quanto em espaços privados em todas as partes de nosso país. Nas áreas rurais e urbanas, nos espaços socialmente mais pobres quanto nos mais ricos, no Nordeste e Norte quanto no Sudeste, Centro-Oeste e Sul.

Desde sua origem a identidade do Brasil está fortemente associada às crenças e expressões religiosas. Antes mesmo da chegada dos europeus, os habitantes pioneiros de nossa terra, chamados genericamente de índios pelos portugueses, já praticavam religião, conforme os mais antigos registros acerca dos povos aqui “descobertos”. 

Certamente que com o domínio português a religiosidade católica trazida na bagagem, mente e coração dos viajantes das caravelas passou a se estabelecer como padrão, tanto para os recém-chegados (que já eram católicos), quanto para os índios e também os africanos que foram depois para cá trazidos.

Historiadores informam, por exemplo, que a legislação que tratava dos povos aqui feitos escravos, rezava que até seis meses após o desembarque de um africano ele deveria estar catequizado e pronto para receber o batismo. Aos indígenas era também imposta a formação religiosa católica e muitos passaram a viver sob a orientação e até controle da própria igreja nos seus diversos espaços paroquiais.

A predominância da fé católica se estabeleceu entre as pessoas e se institucionalizou nos espaços públicos, principalmente com a construção de capelas e igrejas, cujos sinos tocados várias vezes durante o dia, em suas mais diversas formas, comunicavam as pessoas suas tarefas sociais, sobretudo religiosas. A própria construção do templo católico, em local geograficamente destacado, mostrava a importância e supremacia da igreja na vida pública e individual dos habitantes.

Toda esta maciça presença católica não significava, no entanto, que se tinha apenas uma única fé religiosa no Brasil. Além dos pioneiros habitantes de nossa terra, a chegada de navios conduzindo forçosamente africanos, a partir da década de 1550, trará outras muitas contribuições religiosas ao Brasil. 

Embora fossem de diferentes regiões da África, muitas vezes de tribos rivais, os negros africanos trouxeram consigo práticas e crenças religiosas que, ao serem misturados nas senzalas, formataram, por exemplo, o Candomblé. Esta religião de resistência e coragem se dissimulava, sábia e conscientemente, na tradição religiosa católica, para fugir da perseguição da igreja e do senhor da Casa Grande, formando o que veio se designar como sincretismo. Ou seja, os orixás ganhavam identidade de santos católicos, mas ainda eram os santos do candomblé...

Outras tradições religiosas européias, mas não católicas, também tiveram suas incursões no Brasil, como os chamados huguenotes franceses, que eram protestantes, e objetivavam aqui fundar a França Antártica. Chegaram a manter serviços religiosos protestantes, a partir de 1557, mas o grupo foi depois traído pelo próprio Nicolau Villegaignon, que era o líder dos franceses na Baía da Guanabara. Assim se encerrou esta pioneira experiência protestante no Brasil. 

No Recife, durante os 24 anos de presença holandesa no Brasil, a religião protestante tornou-se ativa, mantendo templos e cultos segundo o ritual calvinista. Outros muitos grupos protestantes como anglicanos, luteranos, metodistas, presbiterianos, batistas, começaram a chegar ao Brasil, após 1808, com a vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro e principalmente após a independência em 1822, sobretudo durante o governo de D. Pedro II. No começo do século XX, os grupos pentecostais começaram a se estabelecer no país, tornando-se uma força grande e numerosa após a segunda metade do século passado.

Outras religiões mundiais como judaísmo, budismo, islamismo, os diversos espiritismos, além de outros grupos menores, se fazem presentes no Brasil, há décadas, um século até. Um exemplo da diversidade religiosa brasileira pode ser constatada no próprio Movimento Inter-religioso do Rio de Janeiro, o MIR, que reúne tradições religiosas variadas como Ananda Marga, Bahá’í, Brahma Kumaris, Budismo Theravada, Budismo Tibetano, Candomblé, Cigana, Espírita, Gnana Mandiram, A Grande Fraternidade Branca, Hare Krishna, Igreja Anglicana, Igreja Católica, Igreja da Unificação, Igreja Episcopal, Igreja Luterana, Igreja Messiânica, Indígena, Igreja Metodista, Igreja Presbiteriana, Islamismo, Kardecismo, Perfect Liberty, Santo Daime, Seicho-No-Iê, Xamanismo, Ordem Teosófica de Serviço, Organização Satya Sai, Sufismo, Taoísmo, Umbanda e Zen Budismo.

Além destes vários grupos, que são uma amostra da ampla diversidade do panorama religioso brasileiro, o país ainda possui agnósticos, ateus, sem religião etc. Entretanto, considerando a grande maioria da população brasileira, conforme dados oficiais do IBGE (Censo 2010), os religiosos somam mais de 90%, o que evidencia, sem restar dúvidas, que somos um país religiosamente plural, o que é um privilégio para todos nós. Sim, privilégio, pois embora tenhamos tradições religiosas mais predominantes, temos uma excelente diversidade e relativamente boa convivência entre os variados grupos religiosos em nosso país.

Uma religião é melhor do que a outra? Preconceito e intolerância religiosa 

“Não conheço e não gosto...”, “não sei bem o que é, mas sei que é coisa ruim”, “não me interessa conhecer, não quero nem me aproximar...”. Expressões como estas são típicas de pessoas que julgam as outras, sem necessariamente conhecê-las. A isto se dá basicamente o nome de preconceito. Ou seja, pré-conceito, um conhecimento prévio, sem contato ou convivência razoável, com aquilo/aquele acerca do qual/de quem já se firmou uma visão.

Isto sim é coisa ruim. É uma prática infeliz. Tanto para quem é alvo da discriminação, claro, mas também faz mal para quem fala, pois a pessoa está presa a conceitos e preconceitos que a dominam. Que não permitem que ela avance e cresça como ser humano e cidadão. E em algum momento isso pode se voltar contra ela mesma ao esbarrar em algo/alguém, que pode dificultar sua caminhada em busca de uma vida melhor.

O Brasil não é uma Bósnia, Nigéria ou Paquistão, que têm tido, infelizmente, muitos problemas de preconceito, intolerância e violência motivados por causa de diferenças religiosas, mas tem também enfrentado dificuldades de preconceito e perseguição religiosa. Ainda no período colonial, africanos, judeus e também católicos eram acusados de práticas religiosas estranhas à fé católica e sofriam consequências de seus atos. O Brasil chegou a receber, algumas vezes, a comissão do Santo Ofício, que lutava pela ortodoxia católica e punia, até com a morte, os infiéis, isto é, os que não seguiam suas doutrinas... 

Mesmo no Brasil Império continuou a haver perseguição religiosa, com torturas e mortes, como vários protestantes enfrentaram ao longo de décadas. No final do século XIX e início do XX, já na República, fiéis de religiões africanas continuavam a sofrer discriminação, perseguição e até incursões da polícia em seus espaços sagrados. Todas estas histórias, embora localizadas, são tristes, lamentáveis e vergonhosas. E precisam ser superadas hoje!

Embora haja avanço da consciência de pluralidade e respeito pela diversidade, ainda persistem pensamentos e comportamentos antagônicos à civilidade e convivência com as diferenças. Com certa frequência tem ocorrido agressão a espaços religiosos de tradições afro-brasileiras e discriminação a grupos evangélicos pentecostais, para ficar apenas nestes dois exemplos. Às vezes membros destes segmentos são os primeiros a criarem indisposição entre si. 

Mas, no geral, temos tido um país de convivência pacífica e, em alguns casos, até de cooperação mútua, como o exemplo do MIR, da Iniciativa das Religiões Unidas (URI), do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), do Conselho Latino-Americano de Igrejas (Clai-Brasil), da Federação Espírita Brasileira (FEB) etc. entidades que agregam grupos religiosos diversos e que juntos contribuem para a justiça, a dignidade humana, a cidadania e a paz.

Pode-se até não concordar e mesmo nem apreciar a religião do outro, mas não é preciso chegar à intolerância, ao preconceito, à discriminação, à crítica irresponsável. Em suma, não se pode nem se deve limitar o direito do outro de manifestação e culto religioso dentro dos critérios da Lei, claro, pois, do contrário, se estará atentando contra a própria liberdade e direito de culto/manifestação. E isso não é razoável, nem democrático, nem ainda sinal de bom senso, pois além de gerar preconceito e discriminação pode-se chegar até mesmo a produzir ódio e violência, o que ninguém, em sã consciência, e sabedoria, deseja.

À luz desta reflexão é possível, portanto, concluir, que nenhuma religião é melhor ou superior do que a outra. E esta não é uma afirmação teológica, mas sociológica! Ou seja, não se está comparando para hierarquizar as doutrinas, as crenças, as certezas e seguranças de nenhuma delas. Certamente que todas têm suas especificidades e diferenças, mas todas elas atendem, cada uma a seu modo e objetivos, às demandas de seus fiéis. Quando alguma religião, por alguma razão, já não oferece explicações e segurança que o fiel necessita, ele certamente vai buscar outra fé/crença religiosa que lhe dê o amparo e sustentabilidade para reorganizar e reestruturar seu próprio mundo.

Dentro deste contexto é que um respeitado sociólogo, Émile Durkheim, considera todas as religiões como verdadeiras. Sua afirmação não é quanto à doutrina ou rito. Isto é, não tem a ver com a crença ou prática. Sua defesa é fundamentalmente sociológica: todas as religiões cumprem função social de organizar, estruturar e orientar a vida das pessoas e grupos para o bem da sociedade. Ou seja, para sua própria segurança e bem-estar.

Como cidadãos, religiosos ou não, devemos respeitar e identificar a beleza na pluralidade cultural de nosso país, que engloba também a dimensão religiosa. E mesmo que discordemos da crença ou não crença do outro, precisamos pedagogicamente assimilar a ideia (já bem repetida mas pouco praticada) do filósofo Voltaire: 

“Posso não concordar com nenhuma de suas palavras, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las”. Para o bem comum, para a saudável convivência democrática, para a construção de uma sociedade mais amiga e fraterna.

O teólogo suíço Hans Küng afirma que “não haverá paz entre as nações enquanto não houver paz entre as religiões”. Sabemos que as religiões são parte da história, identidade e maneira de ser dos povos, como acontece no Brasil. 

Mas não desejamos que as religiões promovam divisões ou conflitos negativos, especialmente em um país como o nosso que tem uma cultura mais marcada pela tolerância e respeito à diversidade. Portanto, que as escolas, meios de comunicação, religiões contribuam para mais tolerância, mais respeito e mais fraternidade entre os diferentes. 

Para desenvolvimento de um Brasil mais religiosamente plural e mais saudavelmente pacífico entre todas as suas diferenças e diversidades. 

NOTA: Este texto, (por demais pedagógico em algumas partes) foi escrito em 2009 e publicado numa coletânea voltada especialmente para formação de professores do ensino fundamental e médio.


Clemir Fernandes é formado em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul, em Ciências Sociais (UFF), mestre em Sociologia (UERJ) e doutorando em Ciências Sociais (UERJ). É pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (ISER), integra o Grupo Gestor da Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS) e é coordenador do núcleo do Rio de Janeiro da Fraternidade Teológica Latino Americana-Brasil. É editor-adjunto da revista Novos Diálogos.




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