Viriato Soromenho-Marques olha para a encíclica da ecologia. Em nove pontos



"Era a encíclica que faltava para a Igreja Católica ocupar o seu espaço-tempo na contemporaneidade de forma mais interveniente e efectiva", diz o filósofo e ambientalista. Por Viriato Soromenho-Marques (a partir de uma conversa com José Pedro Frazão).

No dia em que a encíclica "Laudato Si" é apresentada pelo patriarca de Lisboa, Renascença resgata as primeiras impressões que, logo no dia da sua divulgação, este documento causou numa das figuras de referência do pensamento ecológico português. 

1. Um grande documento 

Trata-se de um grande texto sobre qualquer perspectiva em que o convoquemos. Do ponto de vista teológico, filosófico, da análise da intervenção ambiental. Era a encíclica que faltava para a Igreja Católica ocupar o seu espaço-tempo na contemporaneidade de forma mais interveniente e efectiva. 

É uma encíclica que deve ser lida com muita atenção. É um documento com muitos registos, com um texto directo, secundário e terciário. É um documento que vai ser lido pelo cristão comum e pelo cidadão interessado no seu tempo, independentemente da sua convicção religiosa. Vai ser lido também nas academias, pela sua riqueza de pensamento.

2. Tradição e contemporaneidade

Um dos aspectos essenciais consiste na forma como o Papa Francisco vai conseguir entrosar a tradição do cristianismo, em particular da Igreja Católica, com os desafios contemporâneos. 

É interessante verificar que a encíclica começa por uma ligação ao trabalho anterior dos Sumos Pontífices que antecederam Francisco. Há referência ao trabalho elaborado por João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e a Bento XVI, tentando identificar pistas para a temática ambiental que podem ser encontradas em encíclicas anteriores onde a dimensão ambiental não era dominante mas estava já presente. Uma espécie de "semente em evolução". 

Por outro lado, é também notório que o Papa Francisco vai buscar o contributo de teólogos importantes, alguns que estiveram durante muito tempo numa situação de sombra. Há uma marca muito clara do teólogo brasileiro Leonardo Boff, que atravessa as páginas da encíclica. 

3. S. Francisco de Assis, o modelo do Papa 

Por outro lado, há o regressar às tradições profundas da teologia, mas também da filosofia europeia, ocidental, no seu melhor. Em particular, a figura de Francisco de Assis, de onde aliás é retirado o título da encíclica, "Laudato Si, Louvado Seja". S. Francisco de Assis é uma figura teológica e filosófica fundamental. Em plena Idade Média, estabelece uma teologia da relação íntima entre os seres humanos e as outras criaturas. Um triângulo em que temos o Homem, as outras criaturas e Deus. 

O lugar teológico e filosófico de Francisco de Assis passa por essa necessidade de a Humanidade se reconhecer também na condição de criatura ao lado das outras. Isto faz toda a diferença em relação à filosofia moderna, cartesiana, em que a Humanidade, mesmo num quadro criacionista, aparece como um elo intermédio entre Deus e as criaturas. 

Com S. Francisco de Assis, temos esta "humildade humana" ao lado dos outros seres vivos e também dos elementos materiais naturais (o "irmão Fogo", a "irmã Chama") que têm uma dignidade ontológica. É aqui que o Papa Francisco vai buscar a sua inspiração.

4. Ambiente (e não apenas clima)

Há uma vontade de ultrapassar alguma fragmentação epistemológica, uma certa visão da ecologia de acordo com a disciplina científica em que se situa cada um dos seus cultores. Nesse aspecto, a ideia de uma "ecologia integral" vai unir todas as dimensões. É uma encíclica que dá uma atenção muito intensa e rigorosa aos problemas ambientais. 

A imprensa referiu muito as alterações climáticas, é verdade que são um elemento muito importante. Mas fala também da importância dos oceanos, do acesso cada vez mais difícil para milhões de pessoas à água doce e potável ou nas muitas formas de poluição. 

Esses aspectos de uma ecologia "pura e dura" juntam-se aos temas fundamentais da discriminação e exploração do ser humano, da pobreza, da marginalização, da perda da dignidade. Tudo isso é integrado numa constelação extremamente rigorosa e harmoniosa. Os temas da encíclica não são adicionados, mas pensados e desenvolvidos de forma orgânica. É o que de mais penetrante me parece nesta encíclica. 

5. Mas também… clima 

No realce da questão climática, o Papa Francisco entra directamente no debate climático contemporâneo. Na encíclica, refere a importância do princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada. Ou seja, a ideia muito clara de que temos um problema global com responsabilidades diferentes de cada país. 

O problema é de toda a humanidade, mas países como os Estados Unidos, os membros da União Europeia ou os que se industrializaram há mais tempo têm responsabilidades maiores do que países emergentes ou em vias de desenvolvimento. Nesse aspecto, a dimensão política e diplomática está também presente na encíclica. 

6. Demasiados mercados na solução 

Há também um olhar para os instrumentos que estão a ser usados. Achei interessante a crítica, com toda a razão, na confiança excessiva nos instrumentos de mercado, como o comércio de emissões, que tem sido um dos aspectos fundamentais da diplomacia climática nos últimos 20 anos. 

Essa crítica faz sentido, com excepção da Europa, e mesmo aí o que funcionou melhor até nem terá sido o comércio de emissões, mas os avanços tecnológicos, a eficiência energética e as energias alternativas. 

Estamos a esquecer o ponto onde começámos há 30 anos, a ideia de uma taxa universal sobre o carbono. Seria muito mais eficaz termos uma política fiscal, ao nível dos impostos, do que um complexo sistema de comércio de emissões. 

Muito embora me pareça que o ideal seja termos um painel de instrumentos. Não podemos de facto exagerar e considerar que o comércio de emissões é o melhor ou o único instrumento. Aí o Papa Francisco chama a atenção para um aspecto que me parece importante.

7. Um novo sistema internacional de cooperação 

Destacaria ainda a ideia, que me parece central, de um sistema internacional. Que ideia de mundo, de comunidade das nações propõe o Papa nesta encíclica? De uma forma muito clara e determinada, Francisco propõe a ideia de que o desafio do ambiente e a ameaça das alterações climáticas podem ser transformadas numa oportunidade para repensarmos aquilo que somos, como seres humanos, à escala planetária. 

Ele apresenta o ambiente como um bem colectivo da humanidade, com a ideia de bens comuns globais, que têm que ser administrados em comum. Não como propriedade privada deste ou daquele estado, mas como bem comum que só frutificará se for "cuidado" pela humanidade.

A expressão "cuidado" atravessa, como sabemos, toda a encíclica. O Papa Francisco lança as bases de uma nova concepção de direito internacional público, de um sistema internacional, baseado não na competição mas na cooperação obrigatória entre as nações e os povos. 

8. Fragilidade de toda a Criação 

Por um lado, há uma tónica comum na "fragilidade", que atravessa todo o pensamento do Papa nesta encíclica. Fragilidade do ser humano, do ecossistema, do planeta, da condição humana, das criaturas. 

O cuidar da Terra é o reconhecimento da nossa condição de seres mortais. Criaturas são isso mesmo, foram criadas. Não são elas que têm o dom da vida, o dom da vida foi-lhes outorgado. Vivem no espaço e no tempo e são frágeis. 

Aquilo que nos une a todos, contra a ilusão e a arrogância de uma certa tecnologia que perdeu o norte e o sentido da medida, tornando-se numa "metafísica do impossível", é a recuperação da ideia de fragilidade. Nesse aspecto, tanto uma espécie em extinção como uma população fragilizada pela exploração, pobreza e discriminação ecoam esse mesmo traço comum, a fragilidade das criaturas.

9. A responsabilidade do Homem 

Por outro lado, na questão da dignidade humana, o que torna os homens diferentes no seio das criaturas? Há de facto um grande debate no seio do movimento ambientalista, que não é um movimento homogéneo, mas complexo. A posição do Papa não é a de uma "ecologia profunda" ou "ecologia concêntrica". 

Ele situa-se numa tradição da filosofia e da teologia ocidental em que, muito embora a Humanidade comungue dessa característica de fragilidade essencial das outras criaturas, tem uma responsabilidade específica porque a ela cabe cuidar da obra da Criação. 

A nossa diferença não nos torna mais poderosos, mas mais responsáveis. Há um privilégio da administração da Terra, deste grande condomínio que é o nosso planeta. É nesta pequena morada planetária que a Terra constitui que se trava este debate filosófico sobre a responsabilidade, os direitos e deveres.






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