Gisele Marie Rocha, a metaleira muçulmana


De niqab, coberta dos pés à cabeça, sunita e brasileira. A psicóloga de 42 anos, neta de católicos, converteu-se ao Islão mas não deixou de tocar heavy metal. Não tem medo dos fundamentalistas e acaba de formar a sua própria banda.

Num país mais habituado ao biquíni do que à burca, Gisele Marie Rocha admite que o niqab, ocultando -a da cabeça aos pés, fez dela "atracção turística" no Brasil. Psicóloga de 42 anos, nascida em São Paulo, filha de pai advogado e mãe professora, acaba de formar a sua banda de heavy metal. 

Exímia no piano e na guitarra, que estuda desde criança, divorciada e com dois filhos, dedica-se agora integralmente à música, como diz nesta entrevista dada à SÁBADO por email. E é muito clara: "O Islão é a minha religião e a música a minha profissão". 

Neta de católicos alemães, como era a sua vida antes de se converter ao Islão? 

Tive uma forte ligação com a minha família e sempre trabalhei com música, apesar de ser licenciada em Psicologia. Ainda pensei em dedicar-me exclusivamente à Psicologia, mas a música é a minha vocação. Tornei-me muçulmana, em 2009, porque li o Corão. Estudava árabe há alguns meses, e encontrei o Corão, numa edição bilíngue na Internet. Não conhecia nenhum muçulmano. Nunca tinha estado numa mesquita. O Corão levou-me ao Islam [como os muçulmanos consideram correcto dizer Islão]. Sempre fui uma religiosa, mesmo antes do Islam. Tinha fé em Deus. A minha família é católica, mas eu e os meus irmãos seguimos direcções diferentes. 

Antes do Islão pertenceu a outro grupo religioso. Li que a sua mãe ficou contente com a sua conversão porque antes achava que você era "uma bruxa"... 

Antes do Islam, estava numa comunidade de praticantes da Velha Religião ou Bruxaria. Os conceitos eram interessantes e enriqueceram-me em termos de conhecimento, mas discordava deles, indagando se todas aquelas forças da natureza e divindades não poderiam ser diferentes aspectos da personalidade de um Deus único. Isso também me fez distanciar do cristianismo. Eu não aceitava, e queriam que eu nem questionasse, o conceito de Trindade. Reencontrei no Islam a unicidade de Deus. E sim, a minha mãe ficou contente, porque assim ela poderia dizer coisas como "Que Deus te abençoe", e eu não ficaria brava. 

Há muitos convertidos ao Islão no Brasil? 

O número vem crescendo constantemente [cerca de 25%, entre 2001 e 2011, segundo a revista Isto é]. Os últimos números falam em mais de 1 milhão e meio de muçulmanos. A grande maioria, como no resto do mundo, é sunita. Eu sou sunita.

Rezam segregados? 

Seguimos a tradição de separar homens e mulheres durante as orações e acho muito certo. Quando se vai orar não é hora de se distrair com outros assuntos. Isso acontece, sim. Já vi noutros cultos religiosos. 

Porque decidiu usar o niqab e não apenas o hijab, por exemplo? Há no Corão instruções para que as mulheres escondam totalmente o corpo?

Uma activista egípcia, Mona Eltahawy, rejeitou o niqab, dizendo: "Não posso aceitar que quanto mais perto estou de Deus menos Deus me vê". Respeito a opinião dela, mas acredito que Deus pode ver através de um simples pedaço de pano... Não há, no Corão, qualquer descrição de roupa como sendo a mais adequada. É errado aquele que pensa que devemos usar a roupa da época do profeta Muhammad [ou Maomé], já que ele e os seus contemporâneos não usavam a roupa que usamos hoje, sejam femininas ou masculinas. Não há nada sobre o profeta no Corão. O niqab é minha escolha. Começou simplesmente porque me ofereci para ajudar uma amiga a vencer o medo de o usar quando regressou ao Brasil depois de morar alguns anos no Egipto. Ela queria continuar a usar o niqab aqui, e eu acompanhei-a. Senti-me bem. Foi fruto de muita reflexão. Quando comprei o meu primeiro niqab, decidi que o levaria a sério. Desde então, sempre o usei com muito respeito. 

Há várias interpretações sobre o que, para os muçulmanos, significa modéstia. Teoricamente, o objectivo é que as mulheres "não chamem a atenção", mas num país como o Brasil, uma mulher de niqab não chama muito mais a atenção sobre si desta maneira? 

Sim, é verdade, até certo ponto, mas, ao mesmo tempo, não me caracterizo por usar pouca roupa. Usarei o niqab até o fim dos meus dias, Insha’Allah [se Deus quiser].

Num país com temperaturas altas, não é desconfortável? 

O segredo está no facto de a roupa ser larga e os tecidos leves. Sinto-me muito mais confortável do que com jeans apertadas e blusinhas justas. 

Alguma vez se sentiu assediada devido ao niqab? 

Algo estranho acontece comigo e não sei explicar o motivo. Devo ser tão exótica que ultrapassei a barreira do preconceito. Tornei-me uma atracção turística, porque as pessoas, em geral, querem falar comigo. Raramente há algum tipo de preconceito contra mim. Também acredito que recebemos do mundo o que lhe damos. Como sou sempre atenciosa e simpática com todos, como gosto de conversar, as pessoas aproximam-se de mim. Os poucos casos em que fui vítima de preconceito mostraram-me que o problema não está em mim, mas nos preconceituosos. Uma vez eu passava em frente à famosa Galeria do Rock, em São Paulo e, de lá de dentro, três garotas roqueiras cercaram-me. Diziam-se muito felizes por conhecerem uma "mulher egípcia"! Tiraram muitas fotos comigo, mas falavam tanto que foram embora sem que eu conseguisse explicar-lhes que sou muçulmana mas brasileira. Foi muito engraçado. 

Não é um paradoxo usar um tipo de vestuário dos primórdios do Islão, como se tivesse parado no tempo, enquanto a sua música e os instrumentos que toca são uma vanguarda de modernidade? 

O meu vestuário não vem dos primórdios do Islam. Também não acho que o metal e a guitarra sejam vanguarda de modernidade. A música, a grande música, que é o meu foco, é intemporal e universal. Esta mistura de vários elementos é algo que me fascina, e que está também presente na cultura do meu país.

Muitos muçulmanos radicais, como os talibãs e os wahhabitas, renegam a música como haram (proibida). O que acha disto? 

Sigo o Islam tradicional, portanto, não tenho nada a ver com os talibãs e o wahhabismo. Sinceramente, não ligo para o que pessoas assim pensam. Não tenho medo. 

Quando começou a tocar e por que se dedicou ao heavy metal? 

Comecei a estudar piano clássico aos 8 anos. Sempre tive uma forte ligação com a música erudita. Passei para o violão depois de ter começado a estudar piano. Aos 11 anos, virei-me para a guitarra eléctrica. O heavy metal é o estilo que mais se aproxima da música erudita. Não é fácil tocar heavy metal. Estudo música durante 6 horas, todos os dias. 

E a escolha da guitarra? 

A Polka, a minha guitarra, é baseada na Karl Sandoval Polka Dot V, uma das principais guitarras de Randy Rhoads [1956-1982, tocou com Ozzy Osbourne e os Quite Riot], o músico que eu mais amo e que mais influência exerce sobre mim. Mas não é uma réplica da guitarra do Randy. É diferente em vários aspectos técnicos. A guitarra do Randy é preta com bolinhas brancas. A minha é preta com bolinhas cor-de-rosa. 

Que temas abordam as suas canções? Os Slayer, banda de trash metal, dedicam-se a questões satânicas embora os seus membros sejam cristãos praticantes. Podem-se dissociar as convicções religiosas das performances artísticas sem cair na hipocrisia? 

Não acho que os Slayer sejam hipócritas por serem cristãos e as suas letras falarem de temas satânicos. A criatividade não pode ser limitada por certos temas ou por outra restrição. Como compositora, quero sentir-me sempre livre para falar sobre o que eu quiser. Música e lírica são arte. Os temas são variados. Mas eu e a minha banda não vendemos a morte. Evitamos temas satânicos, não por motivos religiosos, mas porque não nos atraem. Eu prefiro a vida, mesmo quando escrevemos crítica social. Prefiro a luz, e não as trevas. 

Como se juntou ao Spectrus? 

Spectrus foi muito importante na primeira leva de bandas de heavy metal no Brasil, nos anos 80, uma era de pioneirismo, onde nada existia em termos de metal. Algumas dessas bandas ganharam o mundo, como os Sepultura. Outras tornaram-se de culto, como os Sarcófago. Alguns dos meus irmãos tocaram nesta banda. Spectrus já acabara a carreira há muitos anos quando a Metal Soldiers Records, de Portugal, lançou um álbum de tributo ao Spectrus, gravado pelos Prellude. O vocalista do Spectrus pensou reactivar a banda e convidou-me para esse reviver, em 2012. Nessa altura, dedicava-me à Psicologia e há seis anos que não tocava, mas aceitei. 

Porque deixou o Spectrus e qual é o seu novo projecto? 

Diferenças profissionais. Toco agora numa nova banda que esperamos lançar em 2016. Estamos concentrados nas músicas para o nosso primeiro álbum. Esperamos tocar em todo o mundo, sobretudo em Portugal.

Além de Randy Rhoads, quem são os seus artistas de referência? 

Randy Rhoads foi o primeiro músico que me impressionou com a fusão entre música erudita e o heavy metal. Indirectamente, mudou a minha vida. Jimi Hendrix [1942-1970] e Paco de Lucía [1947-2014] são outras grandes influências. Yngwie Malmsteen [multi-instrumentista sueco] também: tem a ver com a minha ligação à música erudita, sobretudo a barroca, e a compositores como Bach, Corelli, Handel. Sou ecléctica. 

Como vê a crise dos refugiados, a incapacidade de os países islâmicos saírem de regimes ditatoriais e a sua recusa em aceitarem a separação entre Estado e religião? 

Vejo a sociedade global a entrar numa convulsão previsível porque se organizou de forma insustentável e canibal. A crise dos refugiados tem origem na extrema exploração da miséria, na violência e nos conflitos resultantes desta exploração. A ligação entre Estado e religião no Médio Oriente é útil para a supremacia de um grupo político selecto que tenta perpetuar o poder, já que verdadeiramente nenhum país da região tem qualquer tipo de governo islâmico. As suas interpretações do Islam são sempre adaptadas às necessidades dos governantes. Regimes ditatoriais são excelentes para propiciar as relações entre corrompidos internos e corruptores externos.






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Negociar e acomodar identidade religiosa na esfera pública"

Pesquisa científica comprova os benefícios do Johrei

A fé que vem da África – Por Angélica Moura