A centenária Machu Picchu - Por Heloísa Cestari


Durante expedição pelos Andes, o professor norte-americano Hiram Bingham (1876-1956) - espécie de Indiana Jones da vida real - descobre uma cidade inca perdida em meio às florestas do Peru. 
Nascia para o mundo um de seus mais enigmáticos cartões-postais: Machu Picchu, sonho de consumo de dez entre dez mochileiros sul-americanos.
E não é para menos. Hoje, o labirinto de ruínas e templos erguidos a 2.400 metros de altitude, possivelmente a partir do século 15, forma um dos maiores patrimônios histórico-culturais do planeta. Para descobri-lo, Bingham partiu do Vale Sagrado pelo Rio Urubamba e escalou a face leste da montanha. 
Tinha como guia apenas um menino, filho de um camponês local. E ficou estupefato quando se deparou com a magnífica cidade de pedra, localizada nas altas escarpas dos Andes, como se fosse o ninho de um condor.
"Nenhum outro lugar dos altiplanos peruanos é tão bem protegido pela natureza (...) Para impedir que inimigos ou visitantes indesejados alcançassem seus santuários, eles confiaram nas correntezas no Rio Urubamba, perigosas mesmo na época de seca, e na altura da chapada, flaqueada por precipícios e acessível por uma trilha tão estreita quanto o fio de uma navalha", descreveu Bingham na ocasião.
Hoje, há outras formas de chegar ao topo da ‘montanha velha'. A mais confortável é o trem que parte de Cusco e vai até a estação de Águas Calientes. A viagem dura três horas. De lá, basta pegar um ônibus que deixa bem na entrada do sítio arqueológico.
Outra opção - mais procurada por aventureiros, místicos e turistas que esperam "vivenciar" a viagem - é a Trilha Sagrada dos Incas, que dura cerca de quatro dias e exige bom condicionamento físico para encarar subidas íngremes e o temido soroche, mal de altitude que provoca fadiga e dores de cabeça memoráveis por conta do baixo nível de oxigênio no ar.
Seja lá como for, a vista que se contempla na chegada compensa qualquer esforço. Pedras de granito pesando toneladas formam as estruturas das construções e intrigam engenheiros não só pelo tamanho como pela perfeição dos encaixes. Como e por que aqueles monumentos foram erguidos em local tão inóspito, ninguém sabe ao certo: os motivos parecem tão nebulosos quanto a quase permanente neblina que insiste em cercar Machu Picchu de névoa e muito mistério. 
Mas as suposições mais aceitas pelos arqueólogos são as de que a cidade teria sido construída, sob o comando do inca Pachacutec, para conquistar a floresta ou proteger o enigmático império e as chamadas Virgens do Sol dos ataques da Coroa Espanhola -­ motivo que explicaria o fato de grande parte das ossadas encontradas nas ruínas ser feminina.
Durante muito tempo acreditou-se que a população da cidade teria sido exterminada por uma epidemia de varíola ou pela chegada dos invasores. Nem uma coisa nem outra. 
"Os espanhóis nunca invadiram Machu Picchu, embora provavelmente soubessem da existência da cidade no topo de uma montanha. A teoria mais aceita atualmente é a de que os incas que lá viviam fugiram para outros povoados, como o de Vilcabamba, temendo uma ofensiva do conquistador Francisco Pizarro, que já havia chegado a Ollantaytambo", explica a guia Vilma Huillca.
Muitos pesquisadores, aliás, consideram o local como a mais importante descoberta arqueológica da América do Sul neste século. Afinal, ao contrário de outros lugares em que os arqueólogos têm de se contentar com pequenos achados para comprovar teses e responder perguntas pendentes, em Machu Picchu ­- que no dialeto quechua significa montanha velha -­ tem-se uma cidade inca inteira à disposição, com construções habitacionais, escolas, praças, templos, depósitos, setores agrícolas, tumbas e tesouros que permanecem intactos há mais de 400 anos.
Ou melhor, que permaneceram intactos até serem descobertos na atualidade, porque hoje, segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), esse patrimônio corre o risco de ruir tão rápido quanto sua construção.
Para evitar essa tragédia, várias medidas têm sido tomadas pelo governo peruano, como a redução no número de turistas autorizados a percorrer a Trilha Inca - obrigatoriamente na companhia de guias credenciados (leia texto abaixo). Em abril, um lote com 363 peças incas retiradas de Machu Picchu por Bingham e levados à Universidade de Yale, nos Estados Unidos, foi finalmente devolvido ao Peru. Provavelmente sob as bênçãos do deus Sol.

PARA VER ANTES DE MORRER
Uma votação feita no ano passado pelo jornal on-line The Huffington Post elegeu a cidade perdida dos incas como o destino mais desejado para se ver antes de morrer. A enquete, baseada em locais do livro 1000 Lugares Para Conhecer Antes de Morrer, de Patricia Schultz, trazia como concorrentes as Grandes Pirâmides do Egito, a praia de Ipanema, a Ilha de Páscoa, o templo turco de Hagia Sophia, a Grande Barreira de Corais da Austrália, a Cidade do Vaticano, as Ilhas Galápagos, o Parque Nacional de Yellowstone e o deserto do Saara, entre outros cenários únicos.
Difícil é saber quem morrerá primeiro, pois a ação do tempo ameaça a sobrevivência da cidade perdida dos incas. Para evitar que este patrimônio de valor inestimável deteriore em pouco tempo, o governo peruano restringiu o número de visitantes, no ano passado, a 2.500 por dia. Mas a medida gerou uma onda de protestos e acabou sendo revogada poucos meses depois. Para subir o Waynapicchu, no entanto, a quantidade de visitantes continua restrita a 400 por dia, assim como a Trilha Inca, que só pode ser percorrida por 500 mochileiros de cada vez.
E as restrições não se referem apenas ao número de turistas. Se você sofrer de problemas cardíacos, asma ou tiver pouco preparo físico, é melhor não se aventurar em nenhum desses dois roteiros. A Trilha Inca está cada vez mais cara e complicada. Para percorrê-la, é necessário reservar com antecedência mínima de 30 dias e contratar guia local.
A caminhada pelo percurso sagrado de 40 quilômetros entre Cusco e Machu Picchu dura três noites, que serão - mal - dormidas em acampamentos, sem água quente ou banheiro na maior parte do trajeto. As subidas parecem intermináveis e os obstáculos, intransponíveis, ainda mais em meio ao ar rarefeito da região, que chega a 4.200 metros de altitude no segundo dia de jornada, fazendo com que o caminhante sinta-se lento, cansado, com falta de ar, náuseas e dores de cabeça memoráveis se não tiver o cuidado de se aclimatar alguns dias antes de iniciar a caminhada. 
Os guias credenciados pelas agências se encarregam de levar a comida, os apetrechos de acampamento e cozinhar. Mas você terá de carregar sua mochila com pertences pessoais, que certamente irão pesar mais cedo ou mais tarde. Por isso, nada de reclamações. A dica é imbuir-se do espírito de Indiana Jones e seguir adiante, sem frescuras, mas também sem esquecer itens como protetor solar, repelente, cantil, luvas, pastilhas de cloro para dissolver na água, pílulas para soroche, analgésicos, toalha de banho e papel higiênico.
Apesar dos desconfortos, nem tudo são agruras, e o esforço acaba muito bem recompensado pela vista do nascer do sol por trás da ‘montanha velha' - como é chamada Machu Picchu - bem cedinho, antes de tudo ser invadido pela multidão de visitantes. Vista do alto, a cidade perdida dos incas assume o formato de um condor, ave símbolo da espiritualidade. Não à toa, o local concentrava muitos sacerdotes incas e especialistas em matemática, astronomia e geografia. 
As ruínas dividem-se entre as partes de moradia, de plantio em degraus e a dos grandes templos para observação dos astros e celebração de rituais religiosos. Destaque para o monumentos de pedra dedicados a divindades como Pachamama (mãe natureza), Mama Cocha (água) e o deus Sol, além dos vestígios de um relógio astronômico e um altar de sacrifícios.
Águas passadas. Hoje em dia, o único sacrifício que se vê ali é o dos turistas que decidem subir o Waynapicchu para ver a cidade de pedra lá de cima. E bota sacrifício nisso! A subida à montanha mais alta de Machu Picchu - aquela que aparece no fundo de todos os cartões-postais das ruínas - é daquelas experiências para se fazer uma única vez na vida. À primeira vista, o percurso de apenas 370 metros nem parece tão assustador assim. Mas basta iniciar a subida para entender por que muita gente prefere descartar o trekking para passar o dia circulando entre os monumentos de pedra. 
A caminhada - íngreme ao extremo - alterna rudimentares degraus de rocha da época dos incas com trechos escorregadios, capazes de roubar o fôlego até de um triatleta, nos quais é necessário agarrar-se a uma corda para impulsionar a ascensão.
O visual lá de cima, no entanto, serve de recompensa - ou, pelo menos, consolo para quem ainda não pensou na perigosa descida que terá de empreender, à beira do penhasco. Para entrar em contato com o mundo superior, sacerdotes incas costumavam passar dias e noites no topo, chamado de Apus (na tradução, lugar onde ficam os espíritos dos deuses). 
Crédulo ou não, vale conversar em pensamento com o céu, agora tão próximo, refletir como tudo parece tão pequeno quando se olha do alto, pedir forças para a descida e agradecer a Pachamama ou qualquer outra divindade pelo privilégio de estar pisando em um dos recantos mais misteriosos e fascinantes do planeta. Amém.



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