Locais considerados Patrimônio da Humanidade estão ameaçados por guerras e grupos radicais – Por Irina Bokova e Joe Penney


Em 7 de julho, logo após a destruição de santuários sagrados em Timbuktu, um Patrimônio da Humanidade da Unesco, o porta-voz do Ansar Dine, um dos grupos islâmicos que controlam o norte do Mali, declarou à imprensa que "não existe patrimônio da humanidade. Isso não existe. Os infiéis não devem se envolver nas nossas questões."

Esta declaração capta o desafio que enfrentamos. Para os porta-vozes do Ansar Dine, a cultura tem uma definição restrita. É exclusiva e estática. A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura defende uma visão diferente. 

A cultura tem um significado universal. Quando um patrimônio da humanidade é atacado em qualquer lugar do mundo, como a Mesquita de Umayyad em Aleppo e os patrimônios mundiais danificadas pelos severos bombardeios na Síria, todos nós ficamos chocados; é uma perda para toda a humanidade.

Alguns sítios culturais têm um valor universal excepcional, eles pertencem a todos e devem ser protegidos por todos. Vamos ser claros. Não estamos falando apenas de pedras e prédios. Isso diz respeito a valores, identidades e pertencimento. Destruir a cultura fere as sociedades a longo prazo. Isso as priva da memória coletiva, bem como de preciosos bens sociais e econômicos.

Os generais de guerra sabem disso. Eles atacam a cultura porque ela atinge o coração e porque tem um poderoso valor midiático num mundo cada vez mais conectado. Vimos isso nas guerras da ex-Iugoslávia, onde muitas vezes as bibliotecas eram queimadas primeiro. Em Timbuktu, os extremistas estão atacando os símbolos de um Islã tolerante e erudito para impor sua própria visão estreita e fraudulenta.

Cultura não é atingido como um dano colateral. A cultura está na linha de frente dos conflitos, deliberadamente alvejada para alimentar o ódio e impedir a reconciliação. É por isso que devemos começar a ver os patrimônios da humanidade como um problema de segurança internacional. A questão é como vamos defender isso.

Para a Unesco, é preciso agir em três níveis.Primeiro, depois de anos de esforços para construir instrumentos jurídicos mais fortes, precisamos trabalhar mais para implementá-los e reforçar a capacidades de os Estados fazerem o mesmo. Hoje temos um conjunto amplo de tratados internacionais juridicamente válidos, para proteger a cultura, a convenção de 1954 para a proteção da propriedade cultural no caso de conflito armado, a convenção da Unesco de 1970 contra o tráfico ilícito de bens culturais, e a Convenção de Patrimônio da Humanidade de 1972, cujo 40º aniversário é celebrado este ano.

Cada um desses envia as seguintes mensagens: os Estados têm a obrigação de proteger seu patrimônio, e nem tudo é permitido durante a guerra.  Isso já é uma conquista, mas num mundo que muda rapidamente, os textos jurídicos nunca serão tão velozes quanto os foguetes. Precisamos de novas lideranças para fortalecer as capacidades e a conscientização das nações. Isto significa aumentar nosso trabalho com os museus, as autoridades aduaneiras, a polícia e os negociantes de arte.

A Unesco está ajudando o Mali a realizar uma avaliação de danos e reconstrução, e a garantir as coleções dos museus. Isso significa transmitir as coordenadas geográficas dos locais protegidos para as forças militares e recordar sua obrigação de manter a segurança desta herança. A maioria dos soldados nunca ouviu falar das convenções culturais, eles precisam de treinamento; eles precisam de informações simples e acuradas. Tudo isto pede mais recursos e especialistas em campo.

Implementar textos jurídicos também significa levar os crimes culturais de guerra à justiça. Em 2001, o Tribunal Internacional para a ex-Iugoslávia incluiu a destruição do patrimônio cultural no caso relativo ao ataque de 1991 contra o porto croata de Dubrovnik

Hoje, a destruição do patrimônio cultural faz parte dos debates do Conselho de Segurança da ONU sobre a situação na Síria. O promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional, Fatou Bensouda, declarou que a destruição de santuários de Timbuktu é de fato "um crime de guerra''. O mundo deve agora agir de acordo.

Em segundo lugar, temos de construir "coalizões pela cultura" mais fortes através de uma coordenação mais próxima com todos os parceiros envolvidos, incluindo as forças armadas, a Interpol, a Organização Mundial das Alfândegas e de outros atores, como as casas de leilões internacionais.

Este é um trabalho delicado. Atrair muita atenção para a cultura pode expô-la a novos riscos. Mas os resultados significativos que obtivemos depois que o museu de Bagdá foi saqueado em 2003 mostrou o que uma ampla cooperação pode fazer. Nenhuma agência pode ter sucesso sozinha. Foi por isso que entrei em contato com a coalizão dos Estados para urgir todas as partes a proteger o patrimônio cultural da Líbia durante a intervenção militar no ano passado. Hoje, estamos nos unindo com a Noruega para proteger os manuscritos guardados no Museu de Bamako.

Por fim, a melhor maneira de proteger a cultura num conflito é fazer o máximo para evitar os conflitos, e fazer disso um dos pilares da construção da paz. A Unesco trabalha no mundo todo para usar o poder da cultura para aproximar as pessoas e promover a reconciliação. Vi isso pessoalmente quando a Unesco ajudou a restaurar a Ponte Velha de Mostar, na Bósnia Herzegovina, destruída durante a guerra nos anos 90. Vimos o mesmo poder durante a restauração no Cemitério de Koguryio na Coréia do Norte, realizada com o apoio financeiro da Coréia do Sul.

Isso pode parecer sonhador comparado às notícias terríveis que ouvimos todos os dias das zonas de conflito. E é verdade que a cultura sozinha não é suficiente para construir a paz. Mas, sem cultura, a paz não pode ser duradoura. O mundo pensou grande quando adotou a convenção em 1972. Precisamos pensar grande mais uma vez, para proteger a cultura que está sendo atacada. Costumamos ouvir que proteger a cultura é um luxo e é melhor deixá-lo para depois, as pessoas precisam estar em primeiro lugar. 

O fato é que proteger a cultura é proteger as pessoas, é proteger seu modo de vida e proporcionar-lhes os recursos necessários para a reconstrução quando a guerra termina. É por isso que proteger a cultura é uma responsabilidade.




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