Mulheres revolucionárias se destacam nas revoltas populares do Oriente Médio – por Janine di Giovanni


Este mês faz dois anos que Mohamed Bouazizi, um vendedor de frutas frustrado de uma pequena cidade na Tunísia, ateou fogo ao próprio corpo para protestar contra o assédio pelas autoridades locais. 

Sua morte horrível, seu protesto contra a sua incapacidade de ganhar a vida honestamente na ditadura corrupta de Zine el-Abidine Ben Ali, desencadeou a Revolução de Jasmim, que por sua vez deu origem às revoluções da Primavera Árabe.

As revoltas populares que tomaram conta da Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen, Síria e Bahrein, e derrubaram a velha ordem no Oriente Médio, continuarão se desenrolando por anos. A turbulência alimentou um novo derramamento de sangue, por 20 terríveis meses na Síria e agora na Faixa de Gaza e Israel, mas elas também alimentaram esperanças, sobretudo entre os milhões de mulheres do mundo árabe.

Em quase todas as revoluções, as mulheres estiveram na liderança da luta por mais democracia. Se os acontecimentos desde então fizeram avançar sua causa depende do ponto de vista, do país natal e do lugar que cada um ocupa na sociedade.

No Egito de hoje, muitas mulheres se sentem marginalizadas. Ainda há muita incerteza no país que serve como um farol para a região, por toda parte, as leis e os processos estão em andamento. Até agora, a revolução não trouxe mudanças inabaláveis e, assim como na Tunísia, ela pode prejudicá-las no final. A Irmandade Muçulmana domina a política, e os salafistas têm um papel forte no Parlamento egípcio. Existem sérias preocupações de que os partidos islâmicos em ascensão possam coibir as liberdades das mulheres.

Trinta anos atrás, grande parte das mulheres egípcias saíam às ruas sem nada cobrindo a cabeça; agora quase todas elas usam lenços, e o assédio sexual no Cairo está entre os piores que presenciei fora do Afeganistão. O medo é de que os novos partidos islâmicos farão ruir os direitos que muitas mulheres muçulmanas tinham nos anos 60 e 70, perderam quando o poder de Hosni Mubarak se tornou mais rígido e recuperaram durante as revoluções.

Isso não significa que as mulheres estão voltando para uma existência das cavernas por causa da ascensão dos partidos islâmicos. Em Damasco, hoje, algumas mulheres usam hijabs, enquanto outras usam minissaias e salto alto. E a campanha contra o presidente Bashar Assad consiste em grande parte de mulheres que, ao contrário de homens que estão nas ruas com armas, lutam nos bastidores organizando manifestações. Fadwa Suleiman, uma atriz que cortou o cabelo por motivos políticos, tornou-se o ícone de Homs durante o inverno passado.

Por todo o mundo árabe, o saldo não é totalmente sombrio, não para as mulheres, nem para os jovens, nem para os cidadãos em geral, que estão mais livres para se expressar. Houve importantes mudanças sociais e culturais. Na Tunísia, por exemplo, com suas mulheres tradicionalmente fortes, uma lei de paridade de gênero aprovada em 2011 garantiu uma representação de 50% para as mulheres no Parlamento. O número agora está em 26,7%.

Mesmo no Iêmen, que segundo a organização beneficente britânica Oxfam tem uma das taxas mais elevadas de casamentos de menores no mundo, as mulheres estiveram à frente dos protestos, com os punhos e as vozes levantados. Tawakkol Karman foi uma das agraciadas com o Prêmio Nobel da Paz por seu heroísmo durante a revolta iemenita. 

Grandes esforços foram feitos por mulheres, mulheres jovens como Sarah Ahmed, uma socióloga de 24 anos que está lutando pela democracia e que abriu o caminho para o acampamento de oposição conhecido como Praça da Mudança em Sana.

As revoluções no mundo árabe serviram como um trampolim para muitas donas de casa e mulheres que nunca estiveram no espaço público saírem de suas casas e protestarem. Suas vozes, pela primeira vez, foram ouvidas.

A revolução da Líbia nasceu da injustiça, da pobreza e da ditadura brutal de 42 anos do coronel Muammar Gadaffi, do efeito dominó das revoluções da Tunísia e do Egito, e de um forte desejo de mudança.

Mas também começou porque uma mãe sentou na escadaria do tribunal de Benghazi no início de 2011. Ela estava apelando às autoridades pela libertação de seu filho, Fathi Terbil, um advogado de direitos humanos da Líbia que havia sido preso por protestar contra um massacre numa prisão.

Sua mãe não era uma ativista. Mas se tornou uma, e mais: ela se tornou o símbolo da resistência cívica. Apenas por se sentar nos degraus do tribunal, ela chamou atenção, mobilizando eventualmente multidões que se juntaram à sua resposta à prisão injusta de seu filho. E funcionou.

Sua paciência convenceu donas de casa e médicos, advogados e dentistas, estudantes e desempregados a deixarem seus empregos e suas casas, e começarem marchas de protesto diárias saindo do tribunal de Benghazi e indo até a rua Corniche, ao longo do Mediterrâneo.

Seu ato foi corajoso, porque nos dias de Gadaffi, as pessoas ficavam de boca fechada, sussurrando mesmo durante o café da manhã nas cafeterias. Todos temiam ser pegos por nenhum motivo e presos. Ao quebrar o silêncio, mais mulheres líbias e homens, tomaram as ruas para o objetivo maior, a derrubada do ditador.

Apesar do regime repressivo de Gadaffi, havia uma mistura de mulheres modernas e tradicionais. Com jeans skinny, óculos escuros de grife, hijabs, e algumas usando abayas, elas protestaram, lado a lado.

"Somos como bebês recém-nascidos", disse-me Houda, 28, que estuda para ser advogada, durante uma manifestação. "É como se estivéssemos acabando de acordar." Outras descreveram como a vida sob a ditadura, os limites da liberdade, a falta de auto-expressão, as abafou.

Numa tarde triste, sentei-me  com Taha, a mãe do cartunista político Kais al-Hilali, que foi morto durante o conflito líbio. Benghazi era conhecida pelos artistas corajosos que saíam à noite e desenhavam imagens do coronel Gadaffi. Era perigoso, e seu filho acabou sendo preso e baleado pela polícia secreta. No entanto, vi que apesar de sua pobreza, analfabetismo e tristeza, ela não seria derrotada e sua morte não seria em vão.

Este movimento cresceu. Toda noite, ao pôr do sol, mulheres, estudantes, e alguns homens começaram a se manifestar pela liberdade, agitando bandeiras, cantando.

As mulheres desempenharam diversos papéis na revolução. Algumas na linha de frente, cuidando dos feridos no combate contra o coronel Gadaffi. Outras cozinhavam grandes caldeirões de comida para alimentar os combatentes, outras ainda estavam diretamente envolvidas no planejamento de um novo futuro.

Uma jovem trabalhava em casa fazendo uma base de dados dos mortos e feridos, para que as pessoas pudessem encontrar seus familiares. Mas mesmo depois que Benghazi foi libertada em março de 2011, mesmo após a morte do coronel Gadaffi em 11 de outubro do ano passado, uma grande decepção se instalou.

As irmãs Iman e Salwa Bughaighis, ambas na casa dos 40 anos, uma professora de odontologia e a outra advogada, faziam parte do grupo de ativistas que exigiu o fim da corrupção e uma nova constituição.

Salwa chegou até a enfrentar um filho de Gadaffi, que foi a Benghazi nos primeiros dias da revolução e tentou acalmar as coisas. Durante a revolução, as mulheres se lançaram em diversos papéis, acreditando que seriam recompensadas. Em vez disso, dizem, foram rapidamente deixadas de lado.

"No final, este é o Oriente Médio", disse Fátima, 32 anos, que trabalha para uma ONG em Trípoli. "Ainda é uma sociedade tribal muito machista." Hoje, as mulheres ocupam apenas dois cargos nos ministérios, e havia apenas 32 mulheres para cada 200 homens eleitos ao Congresso Geral Nacional depois das primeiras eleições livres em julho de 2012.

Na Tunísia, as mulheres desempenharam um papel importante, só para depois descobrir que isso nem sempre é reconhecido. Logo depois que a Revolução do Jasmim começou, eu voei para Túnis, encontrei essas mulheres blogueiras, ativistas, hackers e fiquei sabendo como elas se encontraram secretamente e planejaram durante meses derrubar o governo numa questão de semanas.

"As mulheres da Tunísia são fortes", disse Ahmed, o sociólogo iemenita, numa entrevista. "Elas sempre tiveram o luxo de um forte código familiar."

De fato, as mulheres na Tunísia gozavam de uma igualdade muito maior, em parte por causa de uma medida de 1956 no código de direitos civis que garantia formalmente sua liberdade. Elas se veem como semi-europeias, muitas são poliglotas e tradicionalmente têm algum acesso a uma boa educação.

Elas tinham os mesmos direitos que os homens ao divórcio, acesso ao controle de natalidade desde 1962 e ao aborto desde 1965, antes até do marco do caso Roe versus Wade nos Estados Unidos. E a poligamia é ilegal.

 Por causa do forte sistema educacional da Tunísia, as mulheres disseram que mesmo durante o governo de Ben Ali se sentiam empoderadas e fortes, e tinham um papel ativo na maioria dos setores dominados pelos homens.

Desde as eleições de 2011, quando a Ennahda, um partido islâmico aparentemente moderado, venceu, isso mudou. No verão passado, numa viagem pela liberdade de imprensa promovida pela Unesco à Tunísia, encontrei novamente várias jovens blogueiras e ativistas. Elas temiam que seu estilo de vida de inspiração europeia mudasse.

"Primeiro eram as minissaias, depois eles vão querer que usemos abayas", disse uma jovem que tem um blog chamado "Garota da Tunísia". Blogueiras e ativistas disseram que o Ennahda foi eleito na crença de que o movimento não era coordenado por islamistas linha-dura. Estes tunisianos disseram que mais salafistas estão se mudando mais para a região, ameaçando o estilo de vida secular.

Recentemente, visitei o Iêmen, onde há uma mulher no Parlamento, seu nome é Oras Nagi. Ela  estava fora do país e é frequentemente criticada por não participar das sessões parlamentares. Um amigo disse: "Ela sabe que não pode fazer muita coisa."

Apesar do Nobel concedido à senhora  Karman e do enorme esforço dispendido para garantir a remoção de Saleh em fevereiro, a revolução do Iêmen está num impasse, ainda não concluída. O apoio espontâneo das mulheres era um desafio poderoso às percepções tradicionais de seus papéis e de como elas devem ou não devem se comportar em público.

Bashren Suha, uma das milhares de ativistas mulheres, lembrou: "Eu estava pasma de ver como as mulheres de repente pareciam estar crescendo, atrevendo-se a pegar o microfone e partilhar suas aspirações em público pela primeira vez."

Na mesquita, ela acrescentou: "também vi mulheres rezando na primeira fila, ao invés de na parte de trás, como era o costume."

Agora, quase um ano depois, não há nenhuma mudança radical, ou até mesmo, dizem alguns, mudanças mínimas. Quatro em cada cinco mulheres consultadas pela Oxfam numa série de discussões em grupo realizadas em julho e agosto disseram que sua vida piorou nos últimos 12 meses, com um agravamento da crise humanitária e vários conflitos prolongados, étnico, religioso e social, limitando o papel das mulheres na construção do futuro do Iêmen.

Apesar do crédito dado a mulheres por iniciar e sustentar a revolução, ainda há apenas três ministras num gabinete de 34. Uma delas é Hooria Mashhour, ministra dos direitos humanos. Numa entrevista, ela salientou que programas de várias mulheres começaram desde a revolução, e disse que a revolução iemenita está num "hiato", e admitiu cautelosamente que as mulheres não têm de fato se beneficiado, pelo menos não por enquanto.

Talvez no Egito, com frequência o farol do mundo árabe, as mulheres triunfarão. Certamente, as mulheres jovens corajosas, blogueiras, estudantes e professoras de todas as origens e de todos os contextos econômicos do país, estiveram na raiz do movimento que derrubou o presidente Hosni Mubarak.

Ninguém que estava lá pode esquecer o zumbido de mudança nos cafés perto da Praça Tahrir à medida que essas mulheres se inspiraram mutuamente para enfrentar os militares que carregavam cassetetes e armas.

Após a revolução, isso não parou. As mulheres começaram a tomar conta da logística na praça Tahrir para os manifestantes que permaneceram, determinados a questionar o regime militar. Mulheres montaram pré-escolas, centros de alimentação, e até um cinema. Eles foram de barraca em barraca para avaliar as necessidades das mulheres rurais que chegavam de partes remotas do Egito e ver onde estavam suas maiores necessidades. Eles deram aulas de alfabetização.

Elas montaram sua sede num café chamado Cilantro com acesso Wi-Fi gratuito. As mulheres fumavam, lavavam-se nos banheiros e dormiam em cadeiras.

Sua dedicação foi emocionante. Essas jovens não temem espancamentos, tortura e prisão. Elas levantaram suas blusas e baixaram suas calças jeans para me mostrar onde tinham sido agredidas por cassetetes ou punhos. Elas tinham hematomas e cicatrizes, mas continuaram empurrado. Embora o assédio sexual esteja crescendo no Egito, essas mulheres não estavam com medo.

No verão passado, Gene Sharp, o guru das revoluções não violentas e autor do guia "Da Ditadura à Democracia", que descreve como derrubar os autocratas e que foi amplamente utilizado como um guia pelas ativistas árabes, explicou porque essas mulheres não tinham medo.

"Simplesmente faz parte de sua natureza, elas não diriam que isso é ser destemido", disse. O que de fato motiva isso, ele acrescentou: "honestamente, não sei".




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