Lavagem do Bonfim renova esperanças de convívio pacífico entre religiões – Por João Gabriel Galdea e Victor Lahiri


Milhares de pessoas, de diferentes raças, classes e credos, foram às ruas da Cidade Baixa, ontem, em mais uma demonstração de respeito às diferenças e manifestação de fé por Jesus ou Oxalá.

“Je suis Charlie” (Eu sou Charlie), brincou um transeunte ao ver Bira do Jegue passar, sem o jegue, ontem, durante a cerimônia religiosa que antecedeu o cortejo da Lavagem do Bonfim, a partir do Comércio. 

Às 8h40, apesar do ligeiro atraso na programação, a maquiagem branca e preta do nosso Charlie Chaplin não destoou do cenário, tantas vezes fotografado pelo francês Pierre Verger. 

Mas, ainda diante do claro enigma no céu, que não entregava se vinha sol ou chuva, o trecho de oito quilômetros foi ocupado pela multidão de branco que partiu, firme e forte, na paleta, da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até a Basílica do Bonfim, com o objetivo de fazer valer um ditado quase clichê: “Quem tem fé vai a pé”.

Mas entre um milhão de cabeças e mundos, houve quem subvertesse e até reinventasse uma tradição alternativa à ordem estabelecida. “Quem tem fé vai rodando”, brincou o aposentado Luis Antonio Cruz, 50 anos, conhecido como Cabral, que descobriu que chegar e sair de cadeira de rodas era possível.

Acompanhado da mulher, Anete, e do filho, Antonio Luis, de apenas 1 ano, o veterano, já são 32 anos de cortejo, dez deles como cadeirante, se tornou, além de um exemplo de superação, a personificação da relação harmoniosa entre crenças, que é a alma da Lavagem.

“Sou católico, espírita e também sigo a umbanda. Tiro o melhor de cada uma e agrego”, explica Luis, que estreitou suas relações com o divino após um acidente automobilístico que lhe tirou os movimentos da cintura para baixo.

Harmonia

Colina abaixo ou acima, os personagens sagrados de Verger, o fotógrafo francês que retratou a Bahia (e o Bonfim) como poucos, estavam todos lá, sem apelar para charges ou caricaturas. Crianças, comerciantes, mães e pais de santo e o macho adulto negro no comando, se não considerarmos as baianas, de acarajé ou receptivo.

Com Oxum como guia, e colares e contas que homenageavam Exu, Ogum e Yemanjá, Maria Cristina Costa, 56 anos, moradora de Sussuarana, comemorava sua 20ª aparição na Lavagem, além da presença de outras pessoas que creem no sagrado. “Até os evangélicos estão aqui. O importante é receber bem e em paz”, disse.

“Sou um pouco católico, um pouco espírita e também sigo a umbanda. Tiro o melhor de cada uma e agrego”, Luis Antônio Cruz, aposentado, faz os 8 km de cadeira de rodas.

Durante a celebração interreligiosa promovida no adro da Igreja da Conceição, a coordenadora regional da Brahma Kumaris (de orientação budista), Ida Meirelles, afirmou que a Bahia tem tudo para ensinar “como reverter a ordem de intolerância e criar uma ordem nova” no mundo.

“Temos um memorial, que é a Baía de Todos os Santos, e somos um povo mais aberto, que pode ensinar a todos a voltar a viver em harmonia”, afirmou.

O presidente da Federação Espírita, Marcelo Cadidé, também apontou a Bahia como um exemplo ao resto do mundo, e fez referências aos atos terroristas promovidos por fundamentalistas islâmicos que deixaram um rastro de mortes na França, nas últimas semanas.

“Estamos aqui, reunidos, dialogando, fazendo valer a função da religião, que é tornar o adepto melhor”, declarou, antes de exaltar o islamismo como uma religião nobre e digna.

Aquele abraço

Digno de registro, o abraço entre a irmã Ivanilda, freira da Congregação Franciscana Hospitaleira, e a baiana Altamira Teodora, foi um exemplo de que é possível haver não só respeito entre pessoas de diferentes credos, mas também carinho e amor.

Apesar de não se conhecerem, elas compartilharam um caloroso abraço, mostrando o espírito de igualdade e adoração do Bonfim. 

“Eu acho que o sincretismo é algo muito importante. Nós veneramos o Senhor do Bonfim e estamos aqui por ele. É um dia de agradecimento e louvor. Não há diferença de crença, nem religião. Aqui somos iguais”, considerou irmã Ivanilda.

“Todos nós aqui somos amigos e irmãos. O que buscamos hoje é paz, saúde e muita felicidade para todos, por isso não existe razão para criar barreiras nem diferenças”, completou a baiana Mira.

Na mira da Polícia Militar, pouco ou nada tinha a ver com intolerância. “Não registramos nenhum caso de racismo ou de intolerância religiosa, mas, se houvesse, o procedimento seria encaminhar o indivíduo à delegacia”, comentou o soldado Sidnei Anunciação, do Batalhão de Eventos. 

“Não há diferença de crença, nem religião. Aqui somos iguais”, Irmã Ivanilda, após longo abraço com baiana.

Sargento, o deputado Pastor Isidório mostrou que estava tudo junto e misturado ao bater tambor aos pés da Colina Sagrada. E Luis Antonio, que voltou à Conceição na sua cadeira de rodas, viu que, diante de tanta liberdade, igualdade e fraternidade, tudo só podia terminar em dança no Terminal da França.






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