O Estado Islâmico – Por Jung Mo Sung




A violência explícita do Estado Islâmico (EI) é chocante. 

Execuções e decapitações, primeiro dos inimigos da guerra militar, depois também dos inimigos da guerra religiosa (cristãos, muçulmanos de outras tradições, curdos...), pessoas queimadas vivas ... Mais ultrajante é fazer dessa violência um meio de propaganda para a sua causa. 

Para muitos de nós é quase impossível entender essa violência brutal explícita sem limite ser cometida, não por um grupo de delinquentes psicopatas, mas por um contingente grande pessoas que seguem um líder que se autoproclama e é visto por seus seguidores como “escolhido por Deus”. Mas, é exatamente neste ponto, “ser escolhido por Deus”, que podemos encontrar uma explicação dessa violência e crueldade sem fim. Só em nome de religião e de Deus é que se pode praticar violência sem limite sem entrar em conflito com a consciência moral que todo ser humano carrega.

Quando falo de consciência moral, não estou me referindo a um determinado conjunto de normas morais concretas, mas à capacidade humana de diferenciar entre o bem e o mal (não importa aqui o conteúdo concreto do que se entende por bem e mal). Sem essa capacidade, o ser humano não pode fazer escolhas concretas na sua vida e, portanto, não consegue sobreviver. E a base da consciência moral é a diferença entre o morrer (mal) e viver (bem), matar e salvar.

Uma das principais funções da consciência moral coletiva que se desenvolve em todas as sociedades ou grupos humanos é a de colocar limites; especialmente colocar um freio ao instinto de agressividade que pode nos levar à violência sem limite. 

E nesse processo, as religiões tiveram um papel importante (vide a obra de René Girard). Mas, como toda produção humana, a religião também é marcada por contradições internas e ambiguidades. Religião pode colocar limites, mas também pode eliminá-los em nome de Deus. Em nome da missão divina, tudo é permitido.

Violência em nome de Deus não é mais violência, mas sim “purificação” ou, em uma linguagem cristã tradicional, “sacrifícios necessários para a salvação do mundo”. Quem não crê nessa missão divina não aceita essa transfiguração da violência em purificação; mas aqueles que estão dispostos a morrer por essa missão, tudo é feito em nome da vontade de Deus.

Alguns poderiam dizer que o que o EI está fazendo não é religião, mas sim política. Só que para eles, não existe essa distinção entre religião e política. Na verdade, essa separação é uma “invenção” do mundo moderno Ocidental; o que entendemos por “religião” (como algo separado do secular e da política, reduzia a vida privada e a questões de sentido último da existência) é muito diferente do que as culturas pré-modernas e as não ocidentais entediam e/ou entendem. De uma forma inapropriada, poderíamos dizer que a guerra do EI é religião e é política ao mesmo tempo.

Um terceiro aspecto pertinente ao tema da religião envolvido na análise e debate sobre o EI e seus métodos de guerra religiosa é a questão se a religião do EI é ou não islamismo. 

A grande maioria dos muçulmanos do mundo e também os países ocidentais que estão entrando em guerra com EI dizem que essa violência e guerra são contra o Corão e o verdadeiro Islã. O problema é que as lideranças do EI, e também de Al-Qaeda e Talibãs, pensam diferente. Eles lutam em nome do Alá.

Mesmo que seja provado que o EI não representa o verdadeiro Islã, assim como a Inquisição ou as Cruzadas não teriam representado o verdadeiro Cristianismo, não se pode negar que os seus militantes e suas lideranças estão na luta em nome de uma religião. Sem esse espírito religioso não haveria esse ímpeto violento.

Diante da crise ambiental provocada pela civilização industrial moderna secularizada, muitos pensaram que um caminho necessário para superar essa crise seria a volta ao religioso ou a transcendência. Entretanto, as violências em nome da religião nos acordam dessa ilusão de que “a” religião ou “a” espiritualidade é o caminho para paz e harmonia. Elas nos fazem a enfrentar algumas questões que pareciam estar “resolvidas” ou sepultadas: 

a) a complexa relação entre a religião e a violência; b) as diferenças fundamentais da noção moderna e a pré-moderna da religião em relação a esfera do “secular” e da política; c) a necessidade de discernir, não qual é a verdadeira religião, mas que tipo de religião e fé são aceitáveis ou inaceitáveis na convivência humana. 

Para este discernimento, precisamos elaborar critérios que não sejam de nenhuma religião, nem demasiadamente vagos que não sirvam para conflitos concretos.

Tenho a impressão de que o EI vai ser um marco na “transição” civilizatória que estamos passando; transição essa que surge das grandes transformações socioeconômicas, mas também da crise cultural que as acompanha. 

Precisamos reconhecer a importância das crenças religiosas nos conflitos que afetam o mundo; assim como perder a nossa ingenuidade em relação à religião. Para isso, penso que a teologia e as ciências da religião têm, ou deveria ter, muito a contribuir.




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