Vítor Melícias: “A ecologia tem seguramente uma dimensão religiosa” - Por Filipe d’Avillez


O superior dos franciscanos em Portugal ajuda a enquadrar a encíclica do Papa Francisco sobre ecologia e a entender a visão teológica franciscana que poderá ter servido de base ao texto.

Logo pela escolha do seu nome, em homenagem a São Francisco de Assis, o Papa Francisco deu a entender que as questões ambientais iriam merecer algum destaque durante o seu pontificado. 

Renascença falou com o superior dos franciscanos em Portugal, o padre Vítor Melícias, para melhor compreender a razão pela qual um líder religioso se dedica a assuntos de ecologia e conhecer algumas das bases teológicas próprias da tradição franciscana neste aspecto. 

Tendemos a pensar na ecologia como um problema científico, de sustentabilidade, mas é também uma questão moral e religiosa? 

A ecologia é um problema humano e portanto atinge todas as dimensões do ser humano. Exige da parte do ser humano uma atitude emocional, de inteligência, do coração, económica e até uma atitude política. Enquanto cuidado geral da casa, podemos dizer que a ecologia é uma ciência ou uma arte, uma forma de comportamento, uma atitude do ser humano e como tal pode ter, e seguramente tem, uma dimensão religiosa, uma dimensão ética e moral, uma dimensão de economia e política. 

Há dois tipos fundamentalmente de ecologia. O relacionamento do ser humano com a natureza toda pode ser por interesse ou pode ser por respeito, por amor, uma ecologia de fraternidade, do tipo franciscano e cristão. Normalmente confunde-se a primeira com científica, mas científicas podem ser as duas.

Segundo a perspectiva franciscana o homem deve respeitar todos os seres como seus irmãos. Tudo tem a mesma origem, o mesmo pai, a mesma fonte. Portanto, sendo tudo irmão, todos os seres humanos devem não só respeitar os outros seres mas toda a criação, em função da dignidade própria de cada coisa. Isto é uma ecologia de fraternidade, podemos mesmo dizer de respeito pela dignidade das coisas e do seu criador, daquele que é o Pai. 

E a visão do interesse? 

É a ideia de que é preciso preservar todas as coisas da natureza, porque podem fazer falta ao homem. Não se deve desperdiçar os recursos porque depois vem a fazer falta para as gerações seguintes. Às vezes até se dá um argumento equívoco de solidariedade com as gerações que vêm depois de nós. Isto é, atende-se a tudo o que é criado, não como respeito pela dignidade própria do nosso irmão, mas como um recurso que o ser humano desperdiça ou não.

É preciso ultrapassar esta visão, que aliás tem alguma fundamentação bíblica do Génesis, a ideia de que o homem recebeu de Deus todas as coisas, é o dono, pode dominar sobre todas as coisas e portanto pode usá-las, tudo foi criado para o homem. É uma visão completamente errada, completamente contrária.

Cuidar da natureza não é um acto de egoísmo humano em defesa de bens que possam vir a faltar, é uma atitude de respeito por quem merece esse mesmo respeito em função da sua dignidade. 

Quando o Papa escolheu o nome Francisco, e se tornou claro que era em referência a São Francisco, estava já a dar sinais de que esta ia ser uma das suas prioridades? 

Ele mesmo referiu mais tarde que era São Francisco de Assis, no respeito por tudo aquilo que é excluído, que é menor, aquilo que é pobre, pobreza económica, material, espiritual, até pobreza relacional. 

A atitude que o Papa Francisco assumiu como motor da sua opção de nome é uma atitude exactamente de respeito pela natureza, não deixar estragar, não poluir, tratar bem aqueles que são marginalizados, postos de parte, descartados, e muitas vezes – o próprio Papa tem dito isso – o homem descarta a natureza, usa e abusa dela, e parece que agora nesta encíclica dirá mesmo: “Tenham cuidado, porque Deus perdoa sempre, o homem perdoa às vezes, mas a natureza não perdoa nunca”. O homem não pode descartar e utilizar os bens da natureza como se fossem coisas secundárias e que são apenas criadas para seu uso, para seu proveito, para seu prazer. 

O Papa Francisco, mais uma vez, manifesta o seu cuidado pelos pobres, não apenas os pobres materiais mas pelos pobres espirituais, os marginalizados, pelos excluídos, incluindo a natureza que o outro São Francisco chamava “nossa mãe e nossa irmã”. 

Diz que o modelo do Génesis é errado, mas é um modelo bíblico. Há outro modelo bíblico que sustenta a sua posição? 

A ideia bíblica do próprio Cristo que apresenta Deus como Pai. Aliás São Francisco assume essa mesma teologia, a teologia franciscana não é uma teologia de Deus Criador, é uma teologia de Deus Pai e todo o Novo Testamento é pelo menos uma mensagem de respeito pelo outro, por tudo aquilo que é criado. Não aparece Jesus Cristo nem os apóstolos nem os cristãos a dizerem à maneira bíblica usem tudo, estraguem tudo, façam tudo porque tudo está à vossa disposição.

Não, tudo é para Deus, tudo é de Deus e tudo através do homem é para louvor ao próprio Deus, senhor e Pai. 

E mais, esta encíclica, esta mensagem tão urgente para a humanidade, do respeito ecológico, vem agora contextualizada em mensagem de misericórdia, extremamente urgente. O relacionamento do ser humano com os outros seres humanos todos, apesar das crenças, religiões, etnias e situações, é também uma relação para todas as criaturas, com misericórdia, isto é, com coração bondoso. Aquilo que deve ser o motor do relacionamento do ser humano é a misericórdia.

Há um sínodo da família, cuja segunda parte se realiza em Outubro. A família actual, moderna, tem problemas tremendos que têm de ser enfrentados com grande coragem, mas sobretudo com grande coragem assente na misericórdia, no amor, na compreensão para a diversidade das situações tão complexas que os seres humanos têm e que as famílias têm e que as opções culturais na evolução vão tendo. Portanto juntar isso mesmo, o sentido da fraternidade universal, da ecologia e o motor da misericórdia é uma mensagem extraordinariamente humana, cristã, franciscana, diria mesmo, à Papa Francisco.

Sabemos que há igrejas e instituições que já dão o exemplo em termos de responsabilidade ecológica. O que é que a Igreja pode fazer mais? 

A Igreja pode fazer mais, e aliás as diversas confissões cristãs, podem fazer mais sendo exactamente profetas da fraternidade que ligam o ser humano a todas as criaturas e do respeito que todos merecem pela sua dignidade congénita, pela sua dignidade de natureza, dignidade natural.

A Igreja o que pode fazer é, aos seus fiéis, aos membros das diversas comunidades, mentalizá-las para isto, o amor a Deus realiza-se não apenas no amor aos seres humanos mas no amor a todas as criaturas e é o primeiro de todos os mandamentos, amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. E o próximo não são só os seres humanos, são todas as criaturas, os animais as plantas, o ar, o sol, a luz, tudo aquilo que Deus criou, que constitui a grande casa cósmica.







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