Asterix e Obelix invadem o Museu Cluny, na França – Por Andrei Netto
Pense por um instante no símbolo da França. Você deve ter tido em mente cidades como Paris, monumentos como a torre Eiffel, palácios como o Louvre, intelectuais como Rousseau, Descartes, Durkheim, escritores, pintores, heróis nacionais como De Gaulle e Vercingentorix. Pois acrescente outro gaulês em sua seleção: Asterix. Sim, Asterix, o gaulês das ficções em HQ, tornou-se um patrimônio nacional. A prova é que, ao completar 50 anos de idade, o anti-herói baixinho e bigodudo que teme a queda dos céus sobre sua cabeça é centro de atenções da mídia e da opinião pública, merecedor de exibições recordistas de audiência na TV, de um novo livro e de uma exposição inédita no Museu Nacional da Idade Média, no sítio histórico de Cluny, no coração do país.
A febre em torno de Asterix e Obelix, que se irradia também pela Europa, é, na realidade, uma homenagem aos personagens criados por René Goscinny e Albert Uderzo há meio século. Em outubro de 1959, vinha a público a revista Pilote, que trouxe a primeira história da dupla, dois anos antes de Asterix, o Gaulês, livro que inaugurou a série.
Desde então, as aventuras dos dois gauleses ao lado de mais de 400 antagonistas já renderam desenhos animados, filmes, discos, jogos de videogame e um parque temático, além de 34 livros, traduzidos em 107 línguas - inclusive o latim. O último é L’Aniversaire d’Astérix et Obélix - Le Livre d’Or, que chega às livrarias brasileiras na próxima quarta-feira (O Aniversário de Asterix e Obelix - O Livro de Ouro; Record; tradução de Cláudio Varga). Compêndio de histórias curtas, lançado originalmente em 15 países, com tiragem recorde de 3 milhões de exemplares, dos quais 1,1 milhão só na França, o álbum é fruto de um tributo planejado por Uderzo, 82 anos. "Queria fazer com que todos os personagens que apareceram nos livros pudessem ter voz no aniversário", afirmou, em uma das raras entrevistas que concedeu nos últimos anos.
Além de livros de sucesso, Asterix e Obelix rendem também filas de uma hora de espera, que denunciam o local onde está sendo realizada a mostra Asterix no Museu Cluny. A exposição, confluência inesperada de ficção e realidade, é uma reverência a Asterix, um pavilhão da cultura nacional que invadiu um patrimônio da humanidade.
Protagonista de histórias em quadrinhos, o gaulês ganhou espaço digno da importância que conquistou no imaginário dos franceses: está entre as paredes de pedras milenares do recém-restaurado frigidarium de Cluny, um monumento da história galo-romana situado no marco zero da cidade de Lutétia, como Paris era chamada pelos césares. Nada mais apropriado, já que seus autores sempre buscaram inspiração em relíquias históricas para alimentar suas narrativas. A mostra reúne 30 pranchas originais desenhadas por Uderzo, scripts de Goscinny, além de objetos - como uma Keystone Royal, a máquina usada pelo escritor - que ajudam a esclarecer o processo de criação de dois mestres das histórias em quadrinhos.
A homenagem vem acompanhada de outra exposição, esta realizada nas grades que cercam o sítio de Cluny, nas quais desenhos de Uderzo são comparados a obras-primas da pintura ocidental. Assim, postas lado a lado, estão poses de Asterix, Obelix & companhia, e reproduções de telas como Olympia, de Manet, A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix, A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, e de esculturas como O Pensador, de Rodin, de forma a escancarar a influência da arte erudita na obra do desenhista - ainda que perdure a dúvida sobre a natureza da inspiração, que pode ser tanto compreendida como uma reverência à arte ou uma paródia escrachada dos dois humoristas.
O certo é que a efervescência pública em torno dos 50 anos do personagem e a reflexão intelectual feita em torno da obra de Goscinny e Uderzo abriu os olhos da imprensa, do meio acadêmico e até do político para um fenômeno: na avaliação dos franceses, Asterix é muito mais do que uma HQ que deu certo e vendeu milhões de cópias; é também fruto e origem de fragmentos da história da França _ uma constatação que reforça os laços entre os personagens fictícios e seu público fiel.
"Decidimos reunir Asterix e o Museu de Cluny porque são dois monumentos nacionais", disse ao Estado Emmanuelle Héran, curadora e encarregada da política científica da Reunião de Museus Nacionais (RMN), o órgão que controla os maiores acervos de arte da França. A decisão, afirma, foi tomada pelo reconhecimento de que Asterix se confunde em parte com a história do país.
Até os anos 1950 e 1960, aprendia-se nas escolas da França que Vercingentorix, filho de Celtillos, o líder gaulês, povo celta, na luta contra o invasor romano Júlio César, na Guerra das Gálias, entre 58 e 51 a.C., era o herói fundador da nação francesa. Esse mito, criado no século 19 por autores como Amédée Thierry e por Henri Martin, adotado por Napoleão III e instrumentalizado a partir de então pelo Estado Republicano, é um dos elementos do patriotismo francês. Ele ajuda a explicar, por exemplo, o desejo de revanche após a derrota para a Alemanha unificada na Guerra Franco-Prussiana (1870) - e também a beligerância entre os dois países líderes da Europa Continental, que se confrontariam nas guerras mundiais.
Asterix, por sua vez, é a paródia de Vercingentorix, mas ainda com matizes nacionalistas. "Desde sua primeira página, Asterix traz referências à ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial", explica Emmanuelle Héran, lembrando da Resistence Française. "Em uma época na qual não se falava no colaboracionismo francês, Asterix reforçava a ideia de um povo que luta, que resiste, que é idealista e decente". E esse povo é branco, loiro, tem olhos azuis, é forte e peleador. Asterix reforça o estereótipo que a França tinha - ou tem? - de si mesma: a de um país cujo arquétipo é puro, sem miscigenações. "Nos anos 50 e 60, aprendia-se que os franceses eram os descendentes diretos dos gauleses", lembra a curadora. "Essa visão não era completa e não favorecia a inclusão das ondas de imigrantes que já transformavam os franceses em um povo mestiço."
Reprimendas históricas à parte, o fato é que Asterix conta com a empatia dos franceses e com a simpatia dos estrangeiros. Em todo o mundo, as histórias de Goscinny e Uderzo são sucesso. Dentre os cerca de 400 milhões de exemplares já vendidos, 125 milhões foram parar nas mãos de fãs alemães - os alvos iniciais da ironia dos dois humoristas. As razões do sucesso são diversas, e passam pelo detalhismo de Uderzo, pelas manias perfeccionistas de Goscinny e por um enredo clássico, como a luta entre Davi e Golias, marcado por valores universais (como a oposição entre cosmopolitas, os romanos, e autóctones, os gauleses). Não bastasse, suas histórias fazem alusões à vida corrente, grande parte delas tipicamente francesas: Asterix e sua turma mantêm vivas suas tradições, brigam entre si permanentemente, mas se unem e lutam por seus ideais, reagem aos estrangeiros que ousam desafiá-los, prezam a solidariedade. E, claro, amam um banquete regado a vinho no fim da história.
Fonte: http://www.estadao.com.br
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