Drummond antes Drummond – Por Marcelo Bortoloti
Um original redescoberto de Carlos Drummond de Andrade, com 25 poemas escritos nos anos 1920 e comentários de seu próprio punho, apresenta um poeta convencional, quase desprovido de humor – mas com fagulhas da inovação que marca sua obra posterior
Carlos Drummond de Andrade tinha 28 anos quando conseguiu publicar seu primeiro livro, Alguma Poesia, em 1930. Foi uma edição modesta, com 500 exemplares, paga pelo próprio autor. Essa obra, que tinha poemas como No Meio do Caminho, Quadrilha e Poema de Sete Faces, mudou os rumos do modernismo no país.
Para Manuel Bandeira, foi o suficiente para colocá-lo de imediato entre os três ou quatro maiores poetas do Brasil. Num texto de 1958, Bandeira se pergunta: "Como chegou ele a tamanha destreza?". Em seguida, responde: "Conheço um pouco o segredo dela pela leitura de um livro seu que nunca foi publicado – Os 25 Poemas da Triste Alegria. O estilo do livro sabe àquela sutileza própria do setor Ronald-Guilherme (os poetas Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida), no modernismo incipiente". O original dessa obra, de 1924, estava desaparecido. Alguns estudiosos chegavam a duvidar de sua existência. Há quatro anos, o acadêmico Antonio Carlos Secchin, professor de literatura da UFRJ e especialista em poesia brasileira, conseguiu localizá-lo. Ele comprou o original de um amigo do poeta, cujo nome se comprometeu a não divulgar. Agora, com aval da família, pretende publicá-lo em versão fac-similar.
Os 25 poemas foram escritos no começo dos anos 1920. Doze são inéditos, e os demais foram publicados esparsamente em jornais da época como o Diário de Minas. Nesse período, Drummond acabara de mudar-se para Belo Horizonte. Ali, conheceu Dolores Dutra de Morais, com quem se casaria em 1925, e ingressou na faculdade de farmácia (chegou a se formar, mas nunca exerceu a profissão). Ao mesmo tempo, cultivava laços com os círculos modernistas de outras capitais. Em 1924, começou a se corresponder com os poetas Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Foi nesse mesmo ano que Drummond pediu a Dolores, ainda sua namorada, que trabalhava como contadora numa fábrica de sapatos, para datilografar 25 poemas escolhidos. Ele mandou encadernar um único exemplar e o deu a Rodrigo Melo Franco de Andrade, amigo quatro anos mais velho que morava no Rio de Janeiro, então capital da República, e tinha bons contatos que poderiam ajudar na publicação da obra.
Nesses poemas, Drummond já usa o verso livre (embora ainda se declarasse admirador do parnasiano Olavo Bilac) – mas sem a "destreza" de que falava Bandeira. Sua temática são as musas esvoaçantes, o anoitecer, a angústia pela passagem do tempo. "São poemas penumbristas", define Antonio Carlos Secchin, referindo-se a um movimento secundário da literatura, associado ao simbolismo, e de forte influência francesa. Em correspondência de novembro de 1924 a Mário de Andrade, o poeta se queixa: "Nasci em Minas quando devera nascer (não veja cabotinismo nesta confissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado".
As imagens são dolorosamente convencionais: em Matinal, associam-se os seios brancos da amada aos lírios – que reaparecem em um verso particularmente infeliz de Canção do Grego Desencantado: "vós, que tínheis o corpo branco como um lírio". Drummond ainda não apresentava o tratamento irônico da tradição literária que se perceberá mais tarde. Ocasionalmente, porém, fulguram esboços daqueles sintéticos flagrantes urbanos que marcariam Alguma Poesia: "Meninos atiram pedras nos lampiões / e, nos lampiões, / sorri o olho tímido do gás". E Drummond já revela um fetiche particular: "Tuas pernas, desnudas, me fugiam", diz no poema Sensual. Em Poema de Sete Faces, de Alguma Poesia, o fetichismo multiplica-se: "O bonde passa cheio de pernas / pernas brancas pretas amarelas".
Os primeiros poemas, ainda crus, de um Drummond afrancesado, já seriam uma preciosidade somente por mostrar o princípio da trajetória do maior poeta brasileiro. Mas o livro encontrado por Secchin tem mais do que isso. Em 1937, Drummond pegou de volta esse original e fez anotações sobre seus poemas juvenis. Nessa época, ele já morava no Rio de Janeiro e trabalhava como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, então ministro de Educação e Saúde Pública. A esse ministério também pertencia o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dirigido por Rodrigo Melo Franco. Era o início da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas. Drummond, com 35 anos, havia publicado seu segundo livro, Brejo das Almas, e preparava o terceiro, Sentimento do Mundo, que seria lançado em 1940 com poemas como Confidência do Itabirano e Os Ombros Suportam o Mundo. Os comentários escritos por ele, assinados e datados, trazem uma interessantíssima releitura do escritor maduro sobre seus poemas iniciais.
No primeiro comentário, escrito na página inicial do livro, Drummond desfere: "O que há de deplorável nesses versos é que eles são autênticos". E continua: "Eram exercícios à moda do tempo, tímidos e mecânicos. Não deram evasão a nenhuma necessidade íntima, não transpuseram nenhuma aventura ou experiência intelectual ou física". Embora procure o tempo todo realçar essa avaliação negativa, ele às vezes deixa escapar uma ponta de orgulho pelas realizações juvenis. Abaixo do poema Gravado numa Parede ("Saber que tu não virás nunca encher de rosas o meu quarto, / encher de beleza a minha vida... / e continuar a espera de tua graça dolente e sobrenatural"), Drummond comenta: "Este poema conquistou-me a admiração de Abgar Renault e valeu-me alguns (raros) sucessos mundanos. Foi muito recitado em Belo Horizonte". Em Sensual (aquele das pernas), ele acusa "uma quase alarmante carência de sinceridade sexual", mas também diz que "antecipa e de algum modo orienta os poemas que hão de vir". Nas notas sobre A Mulher do Elevador, o poeta provinciano afirma que o poema foi inspirado por uma "impressão de elevador" que trouxe de uma viagem ao Rio, em 1923 – mas acrescenta que não houve mulher alguma na cabine.
Boa parte dos 25 Poemas da Triste Alegria foi comentada também por Mário de Andrade, em registros que constam da correspondência entre os poetas publicada pela editora Bem-Te-Vi em 2002. Em 1926, depois que a doação feita a Rodrigo Melo Franco se mostrou infrutífera, Drummond reuniu novamente sua produção, dessa vez num caderno manuscrito, e a submeteu à crítica do amigo paulista. Esse caderno, guardado por Mário e hoje no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, está dividido em duas partes. Na primeira, aparece a maioria dos poemas afrancesados que compuseram o conjunto entregue a Melo Franco. Na segunda, batizada de Minha Terra Tem Palmeiras, estão suas composições mais modernas, que seriam a base de Alguma Poesia, como No Meio do Caminho e Cidadezinha Qualquer. Mário responde em carta naquele mesmo ano, comentando cada um dos poemas, e não poupa o novato. Ao criticar Convite, ele diz o seguinte sobre as expressões utilizadas por Drummond: "‘repasto frugal’, horrível; ‘vinho velho’ juro que é mentira; ‘vianda tenra’ horrorosibilíssimo, impossível de existência".
Depois de 1937, a trajetória dos 25 Poemas é um mistério. Na década de 80, Drummond declarou, em entrevista, que Rodrigo Melo Franco emprestara a obra a alguém que desapareceu com ela. Clara de Andrade Alvim, de 73 anos, filha de Rodrigo, lembra-se de uma história diferente. Seu pai contou que recebera certa vez um original de Drummond, mas, por ter demorado a comentá-lo, o poeta o apanhara de volta e nunca mais o devolvera. "Isso magoou muito meu pai", conta. Clara não tem certeza de que se trata de Os 25 Poemas da Triste Alegria, mas diz que esse original não está no acervo da família desde a década de 50, pelo menos. Antonio Carlos Secchin, que é diretor da Comissão de Publicações da Academia Brasileira de Letras e já resgatou e publicou o primeiro livro de poemas de João Cabral de Melo Neto, escrito aos 17 anos, e o primeiro livro de Cecília Meireles, Espectros, descobriu os originais quase por acaso, pesquisando em um acervo no qual esperava encontrar edições raras de João Cabral e Jorge de Lima (que não estavam lá). Ele não diz o preço que pagou e insiste em não revelar o nome do proprietário anterior. "É uma pessoa muito ligada a Drummond e que em algum momento recebeu a obra do próprio poeta", assegura. Drummond, está claro, nunca quis publicar essas primeiras e ainda débeis tentativas. Não importa: um poeta de sua estatura já não pertence a si mesmo. Até seus erros precisam ser lidos.
Os tesouros da "namorada"
Quando morreu, em 2003, a bibliotecária Lygia Fernandes guardava em seu apartamento um tesouro de Carlos Drummond de Andrade. Havia com ela pelo menos três livros de poemas inéditos, além de manuscritos de Lição de Coisas e Boitempo. Lygia, que conheceu Drummond em 1951, quando ambos trabalhavam no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, foi sua namorada, como ela se definia, durante 36 anos. Embora o poeta continuasse casado com Dolores Dutra de Morais, ia quase todo dia ao apartamento da bibliotecária. Depois da morte de Lygia, seus familiares venderam o apartamento e recolheram o material. Hoje eles se recusam a divulgá-lo ou até mesmo a falar sobre o assunto.
O poeta e crítico literário Gilberto Mendonça Teles tem em seus arquivos uma amostra desse tesouro. Na década de 90, após a morte de Drummond, ele procurou Lygia, a quem fora apresentado duas décadas antes. Ela permitiu que o crítico fizesse uma cópia do manuscrito do livro Lição de Coisas, publicado em 1962. Na versão copiada aparecem dois poemas que nunca foram publicados, ambos em homenagem a Lygia. Um deles, em forma de dedicatória: "Uma lição sutil agora aprendo, de coisas transformadas pelo amor: Há num livro dois livros. O segundo, sequer o imaginara o próprio autor. Este livro de Lygia é dedicado a Lygia".
Embora se saiba que alguns poemas de Drummond foram escritos em homenagem à amante, ele nunca a citou nominalmente em sua obra. Outro aspecto interessante desse manuscrito é que alguns poemas aparecem em versão diferente da publicada. Um deles é O Retrato Malsim, que Drummond batiza nessa versão de O Retrato Infiel. Ele foi quase todo reescrito. "Isso mostra as transformações do pensamento do autor entre o momento da criação e o da publicação, quando há maior autocrítica", diz Mendonça Teles.
Fonte: http://veja.abril.com.br
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